A independência foi proclamada por um bando de milicianos

Em sua coluna, Raphael Fagundes conta como milicianos bancados por fazendeiros conduziram a separação de Portugal do Brasil

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“A elite política imperial tinha como ponto de honra exibir seu caráter puramente civil e considerava prova de civilização o fato de o país não estar sujeito às contínuas revoltas e pronunciamentos militares de seus vizinhos”.[1] De acordo com José Murilo de Carvalho, os liberais da época tinham ojeriza por exércitos baseando-se em três argumentos: “o papel do exército na sustentação de regimes absolutistas europeus”; o fato de que “um grande exército retiraria da produção numeroso contingente de mão-de-obra”; e, por último, “a tropa tendia a ser antes fator de anarquia do que de ordem, pois tendia a unir-se à população”, aderindo-se a revoltas populares.[2]

Nas comemorações da Independência havia até parada militar, mas nesta data, como descreveu o viajante Kidder, o que todos desejavam era “ver e serem vistos". Lilia Schwarcz ao observar as descrições dos viajantes conclui que “a fundação do Império brasileiro era um motivo nobre para justificar a comemoração”.[3] A data era um pretexto para a festa.

O fato é que havia um desfile militar antes mesmo da Independência para se comemorar o aniversário do herdeiro do trono português, em 12 de outubro. Nesta data, como se fosse um presente de aniversário, D. Pedro I é aclamado imperador do Brasil em 1822. Contudo, em muitas regiões do Império onde, ainda não chegara a informação de que a Independência havia sido proclamada, se comemorava, como de costume, o aniversário do príncipe com desfile militar (com tropas, inclusive, portuguesas).[4]

Não havia exército brasileiro. D. Pedro contratou mercenários para conter os focos de resistência. Na Bahia, o oficial francês Pedro Labatut. No Grão-pará, o inglês John Pascoe Grenfell. Algumas elites viam mais vantagens na união com Portugal do que com o Rio de Janeiro, pois as comunicações eram mais fáceis com Lisboa.

Isso ocorria devido às condições do vento e das marés. Como explica o historiador Luiz Felipe de Alencastro, “no regresso de São Luís ou do Pará, os veleiros deviam buscar bordo bem ao norte, indo até a altura da Madeira, das Canárias ou de Cabo Verde, para depois rumar de volta aos portos do Leste ou do Sul brasileiro”.[5] Por isso se formou dois estados no período colonial: o Estado do Brasil e o Estado do Maranhão. Eram dois mundos diferentes.

E dos “bandos", isto é, das famílias da terra que controlaram o sudeste no período colonial, como bem explica o historiador João Fragoso, que depois serão fundidas com os “homens do grosso trato", nascerão o bando de milicianos que incrementarão o movimento que culminou na Independência do Brasil.

A guarda que escoltou e protegeu D. Pedro I era composta por capangas de fazendeiros que formaram milícias. De acordo com o historiador Eduardo Schnoor, o pintor Pedro Américo, ao retratar o Grito do Ipiranga em seu clássico quadro, teve que uniformizar os milicianos que compunham a Guarda de Honra do futuro imperador. “Esta militarização a eternizou como uma guarda oficial, algo bem distante do que realmente foi: a Guarda era fruto do apoio dos senhores da terra à Independência, com a manutenção dos Bragança no trono brasileiro. Aqueles homens não queriam mudanças. O que explica a adesão de tantos poderosos à defesa pessoal de D. Pedro".[6]

O historiador dá nome aos bois, ou melhor, aos fazendeiros que financiavam as milícias. Estes milicianos se autodenominavam “Leais Paulistas" e “Leais Mineiros".

Pedro Dias Pais Leme, fazendeiro em São João Marcos, importante comarca fluminense. Hilário Gomes Nogueira hospeda os milicianos em São João Marcos. Um de seus genros era Brás de Oliveira Arruda, “um dos mais poderosos fazendeiros do Vale do Paraíba, dono de mais de 300 escravos", explica Schnoor.

Um dos primeiros a se alistar na Guarda de Honra foi Joaquim José de Sousa Breves, que será um dos maiores proprietários de terras e de escravos no Segundo Reinado. Ficou conhecido como o “Rei do Café” no “Reino da Marambaia".

Em seguida, D. Pedro, já em São Paulo, encontra-se com João Ferreira de Sousa, dono da Fazenda Pau D'Alho e, em Guaratinguetá, é recebido por Manoel José de Melo, “senhor do engenho Conceição, com seus mais de 33 mil hectares (ou 33 mil campos de futebol)”.

Enfim, esses nomes mostram que não havia um Exército, mas grupos de milicianos bancados por fazendeiros que conduziram a separação do Brasil de Portugal.

Por boa parte do Império, a organização militar era baseada em critérios censitários e sustentada por fazendeiros, como a Guarda Nacional. Foi montada para combater os próprios brasileiros que resistiam ao modelo centralizador implantado pelo Império com sua corte no Rio de Janeiro.

A ideia da formação de um Exército moderno, montado para enfrentar um inimigo externo, só veio com a Guerra do Paraguai em 1864. Após este conflito, as Forças Armadas se tornaram protagonistas na política brasileira. O próprio quadro de Américo foi pintado em 1888, momento em que os militares gozavam de um grande prestígio popular.

Cabe lembrar que as elites (milicianos) que proclamaram a Independência se tornaram as colonizadoras do seu próprio povo. A dominação de classe continuou como era no período colonial. Por isso, a guerra promovida pelo braço armado dessas elites contra a população se tornou corriqueira. Do Norte a sul do país a repressão foi intensa.

Quase duzentos anos após a Independência, vemos um governo que apoia os milicianos e os têm como seu braço direito. Uma configuração similar àquela que oprimia o povo que lutava por melhores condições de vida. Mas se o Exército saiu escarrado daqueles milicianos, hoje, eles (Exército e milícias) se encontram por intermédio da figura do presidente da República. Enfim, a situação parece pior que a de outrora, pois forças armadas legais e ilegais se aliaram para oprimir a população. Só haverá independência de fato, que possibilite o desenvolvimento pleno da sociedade brasileira, quando o povo se libertar dessas elites milicianas que hoje estão muito bem representadas no governo federal.


[1] CARVALHO, José Murilo. A construção nacional: 1830-1889. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 108.

[2]CARVALHO, José Murilo.  A Construção da Ordem: a elite política imperial. Teatro de Sombras: a política imperial. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 189-190.

[3] SCHWARCZ, Lilia Mortiz. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 257.

[4] CABRAL, Flávio. Oito de dezembro. RHBN, n. 48, ano 4, set, 2009, p. 32.

[5] ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. São Paulo: Cia das Letras, 2000, p. 59.

[6] SCHNOOR, Eduardo. Senhores do Brasil. RHBN, n. 48, ano 4, set, 2009, p. 38.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum