Comecemos traçando o cenário de aberrações dos últimos dias. Temos a insistência da Sara Winter, que teve sua conta no Instragram derrubada e criou outra. Cometeu mais um crime gravíssimo ao revelar o nome da criança que foi estuprada. Algo hediondo, bárbaro, o que poderia ter de pior em um ser humano.
Temos, no cardápio da semana, a extrema-direita cristã que tentou impedir o aborto em uma criança estuprada. Algo tão sem sentido, dogmático e inescrupuloso que parece filme B dos EUA. Felizmente, esta horda foi enxotada do hospital pelas feministas.
Tivemos, ainda, o grave despejo dos moradores do Quilombo Campo Grande, no sul de MG, pela PM do governo desastrado de Romeu Zema. A foto de uma criança ajudando a retirar material didático da escola que, momentos depois, foi destruída por um trator correu o mundo.
Chegamos aos 110 mil mortos por COVID-19 no Brasil, uma tragédia que parece não dizer nada à maioria dos brasileiros, seja porque são obrigados a trabalhar, seja pelo negacionismo, seja pela total frieza e descaso.
O governo de Jair Bolsonaro decidiu enviar para o Congresso Nacional um orçamento de R$ 5,8 bilhões a mais para despesas com militares do que com a educação no País.
Como se percebe, o cenário não é de ofensiva das forças progressistas. Muito ao contrário.
Embora sem a provocação diária de 2019 e início deste ano, o cachorro louco continua babando diariamente. Este cenário levanta a questão sobre a letargia que envolveu a esquerda.
Neste contexto, a análise que Patrícia Valim nos oferece é auspiciosa, na pior das hipóteses, instigante. Vou reproduzir, entre aspas, a proposição de Valim:
“APROVAÇÃO DO GOVERNO BOLSONARO NO NORDESTE: POR QUÊ? QUANDO? ONDE?
A popularidade de Bolsonaro aumentou no Nordeste" - essa frase foi capa de jornais de circulação nacional, e matéria de destaque em revistas semanais e em blogs progressistas e de esquerda sobre o resultado da última pesquisa Datafolha e de outras pesquisas que tentaram explicar os resultados da primeira pesquisa.
Os resultados e suas explicações, no entanto, têm um problema de origem histórica que pode comprometer a análise e ações políticas da esquerda para lidar com o bolsonarismo no Brasil.
Quando comparamos os dados divulgados pela pesquisa Datafolha sobre o desempenho do governo de Jair Messias Bolsonaro e as explicações dos resultados, constatamos que algumas pesquisas: 1. nacionalizam fenômenos/pesquisas ocorridos no eixo Rio de Janeiro - São Paulo; 2. desconhecem o Nordeste ao tomá-lo como uma unidade da federação e não uma região formada por estados bem diversos; 3. sempre foi projeto da direita do Sudeste reforçar a narrativa/o sociologismo explicativo do atraso nordestino cuja população é ignorante, sem acesso à informação, vende seu voto por uma dentadura ou um prato de comida - praticamente o bom selvagem do Crato que só poderá sobreviver de auxílios governamentais ou de subempregos no Centro-sul.
Esses pontos nos obrigam a calibrar a escala das pesquisas porque o auxílio emergencial é uma variável explicativa importante, mas não é a determinante. Reparem: os estados do Nordeste com as maiores taxas de recebimento do auxílio emergencial são: Maranhão e Piauí.
No entanto, os estados com as maiores taxas de aprovação do governo Bolsonaro são Bahia e Ceará - governos petistas que além de não polarizarem politicamente com o bolsonarismo, tem fortalecido as PMs e, consequentemente, as milícias na região, comprometendo a centralidade da luta antirracista para o genocídio da população negra e a luta contra o bolsonarismo de maneira geral.
Longe de mim querer acordar um setor da esquerda dessa sonolência política, ou querer bagunçar a cama do Procusto com respostas prontas para quase tudo nessa vida, mas os dados acima sugerem que as políticas neoliberais dos governos petistas/de esquerda na região comprometem o cinturão progressista/ antibolsonarista formado nas eleições de 2018, muito além do período relativo ao pagamento do auxílio emergencial.
O auxílio emergencial é a variável que pode explicar a extensão desse apoio, mas a privatização da agência de distribuição da água, a militarização das escolas estaduais, a reforma da previdência aprovada sem negociação com as entendidas dos servidores públicos: esse conjunto de política necro-negacionista-neoliberal reforçará a centralidade política do bolsonarismo no século XXI. Não por acaso: será nesse universo que o bolsonarismo deve ser derrotado.”
A autora sugere que esses dois governos não polarizarem politicamente com o bolsonarismo, têm fortalecido as PMs e, consequentemente, as milícias na região.
A tese é importante: governos dóceis abririam uma clareira para a extrema-direita.
É uma tese importante da ciência política que já expus em outro fio: sem oposição determinada, os exageros e escatologias políticas se sobressaem. Sempre foi assim no mundo.
A questão é que os governos do Ceará e Bahia não polarizam com o bolsonarismo, mas outros governos da região não assumem uma agenda tão distinta. Vejam o caso das escolas estaduais militarizadas ou proposta de congelamento dos gastos enviada às Assembleias Legislativas.
O próprio govenador Flávio Dino propôs uma trégua com Bolsonaro em defesa do emprego e renda. Não dá para ser mais esperto que a cobra quando se está no meio de um serpentário. Melhor ficar atento. Mas, Dino já havia sido colocado como inimigo de Jair, mesmo que involuntariamente.
Assim, a tese de Patrícia Valim parece precisa no recorte analítico: não se trata apenas de governos com agenda liberal-conservadora, mas governos que não polarizam com o bolsonarismo que abrem a tampa do esgoto político-popular.
A sugestão se relaciona com a timidez da esquerda brasileira. E, lembra a sugestão de Alain Touraine para quem, no Brasil, se diz socialista, é socialdemocrata; quem se diz socialdemocrata é liberal; e quem se diz liberal é de direita ou extrema-direita. Difícil.