O historiador Edward Thompson discorda da ideia de que os tumultos promovidos pelas multidões inglesas do século XVIII sejam apenas “rebeliões de estômago”. Acredita que esse tipo de análise é parte de um “reducionismo econômico crasso”.[1]
Thompson introduz uma nova visão para entender o processo: “entendo que os homens e as mulheres da multidão estavam imbuídos da crença de que estavam defendendo direitos ou costumes tradicionais".[2] A Revolução Industrial estava alterando o ritmo de trabalho afetando o cotidiano dos trabalhadores de modo a incomodá-los.
Por isso, as revoltas tinham “como fundamento uma visão consistente tradicional das normas e obrigações sociais, das funções econômicas peculiares a vários grupos na comunidade, as quais, consideradas em conjunto, podemos dizer que constituem a economia moral dos pobres. O desrespeito a esses pressupostos morais, tanto quanto a privação real, era o motivo habitual para a ação direta".[3]
Podemos fazer um paralelo com a história da classe trabalhadora brasileira, respeitando, evidentemente, as contradições geradas pelo espaço e pelo tempo.
Até a Era Vargas, os trabalhadores tomavam as ruas do sudeste brasileiro em uma árdua luta por direitos. Era uma classe que ainda estava em gestação, pois vinha de uma realidade escravocrata, principal elemento que a diferenciava da realidade inglesa do século XVIII.
Ângela de Castro Gomes acredita que a formação da classe operária no Brasil teve uma grande intervenção estatal, uma espécie de “cidadania regulada", tendo o “gozo de direitos sociais sancionados por lei".[4] O trabalhismo, ideologia criada por Vargas, tirou a voz dos operários e a trouxe para o Estado. Após 1930, o trabalho passa a ser valorizado como meio de ascensão social e a dignidade do trabalhador é usada como discurso persuasivo. O Dia do Trabalhador – até então marcado pela luta – passou a se chamar Dia do Trabalho, um dia de festa.
O Ministério do Trabalho e, mais tarde, a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), transformaram Vargas no “Pai dos pobres” e num líder da classe trabalhadora. A partir de então, os trabalhadores passaram a lutar pela concretização destas leis e acreditavam que os patrões e políticos conservadores impediam o governo Vargas de avançar na política operária.
Não por acaso, o PCB apoiou Vargas nas eleições de 1950. O discurso de ambos eram muito parecidos e, ser contrário a Vargas, naquele momento, iria prejudicar a imagem do partido no meio da classe operária.
Vargas, portanto, funda uma economia moral dos trabalhadores. A lei se torna moral e não a moral, lei. Os trabalhadores vão às ruas para que se cumpra a CLT, os direitos trabalhistas. Não se quer romper com as leis, apenas exigir o seu cumprimento.
A pressão do capital externo para solucionar o problema da inflação desencadeado por um projeto de industrialização que não investiu no mercado consumidor, exigiu um maior controle sobre os movimentos sociais. Deste modo, os investidores apoiam o golpe de 1964.
O intuito das classes dominantes era justamente transformar essa economia moral. A repressão acabou contendo o movimento dos trabalhadores, desorganizando-o.
O sociólogo Francisco de Oliveira mostra que o populismo de Vargas, embora promovesse uma ditadura, “foi um movimento de inclusão da classe trabalhadora na política”, por isso não deve ser comparado ao fascismo. Já “o regime político de 1964-1984 caracteriza-se pelo oposto no que diz respeito às relações com a classe trabalhadora, o movimento sindical e as classes burguesas. Dir-se-ia tratar-se não de um regime de inclusão, mesmo tutelada, mas de exclusão da política”.[5]
A burguesia aplicou o golpe contra o populismo e contra os comunistas que estavam de mãos dadas em defesa desta economia moral. Mas quando houve a redemocratização, que inaugurou um cenário político dedicado à inclusão do país na ordem neoliberal, a pressão popular veio a tona.
Os trabalhadores e os movimentos sociais se organizaram na defesa desta economia moral. Surge o PT e outros partidos com um discurso menos radical que o adotado pelos comunistas, mas, ainda, em defesa da economia moral fundada décadas atrás.
Essa movimentação pressionou as elites a adotarem o mesmo método, a “estatania", o que desencadeou na Constituição de 1988. Esta, por sua vez, incorporou muitos elementos da CLT e se tornou um dos documentos jurídicos mais progressistas do mundo. Agora, os trabalhadores lutam pela concretização da Constituição de 88, enquanto os patrões fazem de tudo para introduzir a economia política neoliberal.
Este conflito irá configurar os anos 1990 e 2000. Até que as manifestações de 2013 apresentaram-se como um marco divisório na história da luta pela economia moral. Os manifestantes acabaram levando poucos elementos trabalhistas para as ruas.
Não foi a melhora das condições econômicas das classes trabalhadoras, durante o governo PT, que contribuiu para este fenômeno, pois durante o período do nacional-desenvolvimentismo, essa melhora também aconteceu e os trabalhadores não deixaram as ruas.
O que aconteceu foi que os conservadores se aproveitaram dos meios de comunicação atuais para difundir um debate moral que nada tinha que ver com a tradicional economia moral. O debate moralista precisava desgarrar-se desta economia. Desta vez, uma ditadura não seria necessária, pois se tem a disposição uma tecnologia que daria inveja aos ditadores de outrora. Promove-se, então, uma polaridade política alienante dedicada a alijar os valores cotidianos dos valores econômicos.
Houve reações às reformas trabalhistas, mas não é possível identificar manifestações substanciais contrárias ao novo conjunto jurídico que confronta diversos elementos da economia moral. O Ministério do Trabalho foi extinto e pouco foi comentado, hoje parece que nunca existiu, não se toca no assunto.
Será que a uberização da mão de obra sepultará, de uma vez por todas, essa economia moral fundada pela era Vargas? De qualquer forma, resquícios dela ainda podem ser encontrados na greve dos trabalhadores de aplicativo, que pode servir de exemplo para o restante da classe operária.
[1] THOMPSON, E. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Cia das Letras, 1998. P. 151.
[2] Id., p. 152.
[3] Id.
[4] GOMES, A. A invenção do trabalhismo. 2 ed. Rio de Janeiro: Remule Durará, 1994, p. 7.
[5] OLIVEIRA, F. Ditadura militar e crescimento econômico: a redundância autoritária. REIS, Daniel Aarão, REDENTI, M. e MOTTA, Rodrigo Patto Sá. (orgs.) O golpe e a ditadura militar: 40 anos depois (1964-2004). Bauru: EDUSC, 2004. p. 119.
*Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.