Acho que foi em 1984, que fui fazer um trabalho no município de Touros, no Rio Grande do Norte, e conheci um povoado muito bom, chamado Carnaubinha.
Não tinha ruas, só uma estradinha de terra, com casas simples espalhadas entre coqueiros.
Era uma comunidade de pescadores, com um povo simples e bom.
Havia muitos e muitos coqueiros, e reparei que eles tinham marcas. Uns tinham um xis feito com cal. Outros tinham um círculo em volta do tronco; outros dois círculos; outros alguma letra desenhada com cal ou piche...
Curioso, perguntei o que significavam aquelas marcas.
E me contaram que eram para identificar o dono de cada coqueiro.
Quem plantava um coqueiro, era dono dele. Então, quando começava a dar cocos, o dono era quem tinha direito de colher os frutos.
Para não ter confusão, faziam essas marcas, pois cada um plantava onde quisesse e os donos eram misturados.
Não havia donos das terras. Elas eram da comunidade.
Para fazer casas, também era assim: o sujeito escolhia um lugar e construía, sozinho ou em mutirão.
Quem quisesse plantar arroz, feijão ou qualquer outra coisa, escolhia um lugar e plantava. Todo mundo respeitava.
Mas estava acontecendo uma encrenca nessa época.
O prefeito começou a comprar coqueiros. Todo mundo estranhava, achava até gozado. Como é que pode alguém querer comprar coqueiro? Era só plantar.
E vendiam, baratinho.
Assim, o prefeito comprou todos os coqueiros de uma área grande e depois cercou tudo, dizendo que era dele,
Aí é que o povo percebeu a armadilha. O sujeito usurpou a terra.
Um velho morador concluiu: “O que ele comprou foram os coqueiros, não a terra. A terra não é de ninguém, é do povo, é de Deus, é da nação!”.
E me lembrei de uma conversa com uma amiga: a propriedade da terra começou quando alguém cercou um pedaço, falou que era dele, e os outros acreditaram.
E eles foram se apropriando de tudo. São poderosos que contam com a ajuda de governos.
Vi na internet que Carnaubinha não é mais aquela, virou uma vila como outra qualquer.
Eu me lembrei disso, porque agora o Senado aprovou a privatização da água no Brasil. Uma grande safadeza contra o povo brasileiro.
No Chile, fizeram isso, durante a ditadura de Pinochet, e os efeitos estão massacrando o povo até hoje. Uma comunidade pode ser dona das terras, mas a água é de capitalistas. Os moradores só podem se abastecer se pagarem.
Assim, amigos... Lá vai o Brasil indo pro brejo. Você que mora na beira de um rio, logo não vai poder usar a água. Se não tiver dinheiro para pagar, vai morrer de sede na beira do rio.
Agora, uns adendos que não falei na rádio, falta de tempo.
O trabalho que fomos fazer em Touros foi por causa de uma doação do Banco Mundial ao sistema educacional do município. Teoricamente do município.
Um milhão de dólares, na época, era uma baita grana. E o Banco Mundial quis fazer uma experiência para melhorar o ensino em locais com professores sem formação para isso, os professores leigos.
Touros foi o município escolhido. Na época, era considerado distante, sem ligação por asfalto com lugar nenhum. Para se ter ideia, São Miguel do Gostoso, hoje um lugar turístico, com resorts e não sei que mais, era uma pequena comunidade de pescadores e rendeiras.
O prefeito era do PDS (ex-Arena) e tinha uns poucos vereadores do PMDB. O presidente era o Sarney (não me lembro se ele já tinha tomado posse) e o ministro da Educação era o Marco Maciel.
As professoras leigas (só tinha mulheres) eram muitas, e ganhavam coisa que acho que não chegaria a R$ 100 hoje. E as que eram mulheres de políticos do PMDB estavam com nove meses de salário atrasado.
O milhão de dólares seria para pagar um salário decente para elas durante um ano, além de fazer mais algumas coisas, como uma cartilha específica para o município. Só que o dinheiro não ia direto para o município. Foi pro governo federal. Em Brasília, criou-se então uma equipe multidisciplinar para administrar esse dinheiro. Contrataram uma ou duas pedagogas, um sociólogo, um economista, um assessor de imprensa(!)... E alugaram uma casa para sediar o “projeto”.
Bom... A casa precisava de faxineira, de uma mulher pra servir café...
Claro que os contratados eram chegados do governo, né?
Resultado: desse milhão de dólares, boa parte parou em Brasília, para “administrar o projeto”. Pelos cálculos que fizemos (nós que passamos por Brasília para ir para o Rio Grande do Norte), uns 400 mil dólares foram usados para custear esse grupo em Brasília.
Bem... Sobravam uns 600 mil... Mas não foram direto para Touros. Foram para Natal, onde criaram uma equipe igual à de Brasília, só que um pouco mais barata. Calculamos que pararam em Natal uns 350 mil dólares.
Aí... Bom... Tem a coordenadoria regional do ensino. Não foi direto para Touros. Mais um pouco da grana parou ali. O restante, talvez uns 150 mil dólares, foi para o município. Mas não chegou nas professoras.
PS.: Quem dirigia o trabalho que fomos fazer em Touros era o Fernando Passos, da área da então Fundação Cenafor, ligada ao MEC. Depois, essa Fundação foi assumida pelo governo do estado de São Paulo, passou a se chamar FDE (Fundação para o Desenvolvimento da Educação). Ele dirigiu um documentário com 27 minutos sobre a vida de professor leigo no município, em 1985. Causou um rebuliço na época. Chama-se “Eu, professor leigo”. Vi que tem no Youtube. Entrei nele, o som no começo está meio ruim, mas depois melhora: youtube.com/watch?v=3ZgV7m6_314
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum