Não será desprezando os saberes que ensinaremos a valorizá-los

"A atitude que tomarmos agora será escrita nos livros de história pelos quais seremos avaliados e estudados em um breve porvir"

Leitura em escola pública (Foto: Bruno Concha)
Escrito en OPINIÃO el

Há, pelo Brasil afora, o debate sobre quando voltaremos às aulas presenciais. Antes de entrar no quando, pretendo debater o para quê.
Para que educamos, afinal?

A escola não pode ser um lugar que ensina injustiças. Existe a diferença de atitude e preocupação em relação às escolas privadas e públicas. Aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, o prefeito Crivella deu uma data, 3 de Agosto, para o retorno das aulas nas escolas privadas. Não temos previsão certa para escolas públicas e, dentro desse cenário, acho eu, quem for às aulas irá desaprender. Desaprender a ser justo. Desaprender como ser solidário. Desaprender a cuidar do próximo. Desaprender a ser gente.

Estamos lidando com crianças e jovens que, ainda que tivéssemos a certeza de que nenhum deles morreria mesmo que fosse contaminado, se tornarão vetores. Se queremos ensiná-los a ter sucesso, não podemos fazer isso navegando com eles em um oceano de miséria e num mar de mortos pedindo para que só olhem lá longe, que mirem somente o horizonte. Não lapidaremos um ser humano dessa forma e sim prepararemos mais um monstro para atuar com todo o seu egoísmo nesse mundo.

Falamos muito das crianças e dos jovens. Mas precisamos falar com eles. Precisamos que eles saibam que não podem ser usados como ferramenta eleitoreira e que não há nada mais precioso do que existir. Entre voltar ou não a nos encontrarmos, precisamos, antes, confessar que não podemos e não sabemos mais como fazer. Nós, professores e professoras, que já demos tantas respostas, agora, estamos buscando por elas.

O mundo, em tempo algum, foi explicado somente pela química, física, biologia ou pela matemática. Mas, mais do que nunca, precisamos da filosofia e da sociologia para conseguirmos avançar no mínimo entendimento do que vem a ser essa tal realidade.

Tenho formação em Filosofia e em Física.  Não considero a Física uma disciplina científica e sim uma indisciplina. Aprendi a ser rebelde estudando ciência, a não me contentar com respostas simples. Entendi que estudar a natureza é, antes de tudo, estudar como raciocinamos e lemos o mundo.

Uma das perguntas que me fazem com muita frequência é como eu concilio a Física com a Filosofia. A pergunta é interessante, mas mais curioso é pensar como surgiu a ideia de que esses dois saberes não conversam – se não se faz um sem a existência do outro. Não se estuda o átomo sem questionarmos a possibilidade de sermos feitos todos do mesmo tijolo.
Não existe conflito algum entre ciências exatas e humanas e sim preconceitos que foram semeados há anos e que fizeram da realidade um Frankenstein ao compartimentarem o que é uno em essência.  

Por que estou falando sobre isso? Porque a Escola sempre foi pensada e manipulada pelos poderes. Geralmente é gerida por administradores e não por educadores. Um dos poderes se chama mercado. E, dentro da escola, há conhecimentos que são mais valorizados do que outros, a meu ver, de forma muito equivocada. Não podemos desprezar a história e muito menos ensiná-la de forma presencial hoje se depreciamos, desrespeitamos, desconsideramos e subestimamos o que historiadores, sociólogos e filósofos têm escrito sobre essa pandemia. Não faz sentido ensinar sobre a natureza dentro de uma sala de aula desdenhando um vírus.

Se estamos aqui para estudarmos a realidade e o mundo, diante uma mudança radical que o coronavírus nos trouxe, precisamos repensar se queremos, de fato, educar ou nos convertermos em meros funcionários estúpidos e broncos desse laboratório gigante chamado Brasil. Não faz sentido cancelar o Reveillon e o Carnaval e querer que as aulas presenciais voltem.

Não existe conhecimento exterior e independente ao ser humano. O ambiente é múltiplo e tem conjunturas, conjecturas e relações diversas. Não é somente adquirir “conteúdo” de que o aluno necessita. Educação e sociedade são entidades que não se podem confundir, mas podem e devem morar na mesma casa e em todas as Escolas.

A atitude que tomarmos agora será escrita nos livros de história pelos quais seremos avaliados e estudados em um breve porvir. Gostaria, permito-me sonhar, que vivêssemos também para sermos registrados e virarmos palavras de um texto mais abrangente que é a nossa própria vida, a nossa própria biografia, a nossa própria história.

Estamos sendo apresentados a números e gráficos o tempo todo. Inclusive, prefeitos e governadores os usam para mostrar que estamos em condições de retomar nossa rotina aos poucos. Mas é necessário dizer que dentre os milhões de estudantes temos, por exemplo, a Natália, o Jorge, o Maurício, a Luana… que não são aquilo que cabe em sua carteira de estudante com um número de matrícula. Para além de número, têm nome, pensam, assimilam, observam e aprendem com exemplos. Ensinar a cidadania é mostrar a possibilidade de ser feliz e não há felicidade autêntica quando o sucesso de um depende do fracasso ou causa a morte do outro.

Entendo que muitos pais, mães e políticos estão preocupados em preparar os jovens para o futuro. Mas é necessário que ele exista para que seja vivido. Para sonharmos, fazermos planos e sermos aceitos pelo póstero não podemos nos exilar da atualidade.


Ouvimos que as escolas particulares têm condições financeiras de voltar e já vem negociando a volta com o poder público. Ainda que obedeçam às exigências sanitárias (o que é extremamente difícil beirando o impossível, dado o número de alunos e o tamanho das salas de aula) e que a volta “seja voluntária” como estão propondo (ou seja, faltas não serão computadas), pergunto-me se todas essas crianças irão de carro particular para as escolas. Se considerarmos que uma só pessoa use transporte público (que bem sabemos não há distanciamento seguro possível), como garantir a segurança de todos os demais?

De acordo com o prefeito do Rio, esse retorno seria facultativo a professores, funcionários e alunos que assim desejarem. Considerar essa possiblidade é esquecer por completo que vivemos em um mundo no qual as relações de trabalho que o capitalismo estabelece não são “facultativas”.

Quando as atividades retornarem, nenhum professor, ou outro funcionário, terá a opção de escolher entre trabalhar ou não. O destino dos que optarem em continuar o isolamento, posso afirmar sem medo de errar, será o desemprego. No mais, como as escolas garantirão a equidade no ensino entre aqueles que decidiram voltar e os que preferiram ficar em casa?

A Fiocruz já se manifestou dizendo que o retorno às aulas presenciais neste momento é uma medida prematura e que a pandemia não está controlada. Para que vamos ensinar ciência presencialmente se desconsideramos o que ela tem nos falado? Como vamos mostrar a importância da biologia se desconsideramos a letalidade de um vírus? Como vamos ensinar a importância de saber fazer e ler os gráficos se desconsideramos o que nos são mostrados? Qual o sentido disso?

Voltaremos a nos ver em sala de aula quando esse encontro não tiver o peso da responsabilidade no aumento dos números de mortos.

Nós, professores e professoras, seguimos nos mobilizando e dando nossas aulas.

Sabemos que não será desprezando os saberes que ensinaremos a valorizá-los.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum