Talvez não seja possível pensar os filmes de Pier Paolo Pasolini, cineasta italiano, sem levar em consideração a ideologia fascista contra a qual essa obra se situa. Essa constatação não é uma novidade. O filósofo e historiador da arte Georges Didi-Huberman constrói sua análise da obra de Pasolini, o livro Sobrevivência dos Vaga-lumes, tendo em vista justamente o reconhecimento do fascismo como algo que atravessa a maior parte dos filmes e textos do cineasta. De fato, todos os outros temas recorrentes nos filmes de Pasolini (sexualidade e a paisagem e periferia italianas, para pensarmos dois deles) são articulados em relação ao fascismo.
No modo como se relaciona com a ideologia fascista, a postura de Pasolini não é a de um levante contra o fascismo, mas de uma distorção de seus afetos. Encorporado pela periferia, por sexualidades desviantes, por mulheres, o fascismo é quebrado, reconfigurado, e seu projeto de poder total (classista, masculino e hétero) se revela como um projeto sempre fadado ao fracasso. Quando o diretor personifica o fascismo em personagens como o jovem cafetão romano Accattone – do filme Accattone – desajuste social (1961) –, o que se coloca em cena realmente é uma apropriação periférica do fascismo e, portanto, uma apropriação já arruinada.
Leitor de Gramsci, Pasolini organiza um antifascismo utópico, imaginando, em seus filmes, um lugar de distorção, subversão e resistência ao Estado fascista e à Igreja. Esse lugar poderia ser definido pela luminosidade periférica que Didi-Huberman descreve em seu livro. Imaginados como espaços de afetos socialistas e sexualidades anárquicas, esses lugares não estão também eles mesmos protegidos da sombra fascista (autoritária, assassina, normativa e heterossexista), pois estar protegido significaria localizar essa utopia fora da História – enquanto o lugar antifascista utópico de Pasolini é, sempre, um lugar histórico.
Localizar a narrativa é o principal movimento feito aqui para recusar qualquer utopia que se proponha ahistórica. Durante a pré-produção de O Evangelho Segundo São Mateus (1964), Pasolini estudava possíveis locações para o filme na Palestina. A sua ideia era localizar a narrativa cristã segundo as próprias descrições geográficas da Bíblia. Surpreendendo-se com o processo de modernização que tomou a região, ele opta por relocalizar a narrativa no Sul da Itália. No documentário Sopralluoghi in Palestina per il vangelo secondo Matteo (1965), ele justifica todo o seu processo criativo de localização da narrativa cristã.
O filme é fascinante. Nele, vemos um homem ateu, um “invertido” (termo pejorativo usado para descrever homossexuais na Itália), atravessando como paisagens históricas o que para alguns aparece como uma paisagem sagrada, canônica. Pasolini reflete sobre a geografia local, situando-a a partir dos eventos da narrativa cristã. “Aqui, o Cristo teria falado para uma multidão”, afirma ao apresentar uma região desértica. De volta a Itália, o diretor faz um movimento muito consciente de rompimento com o cânone e relocalização da terra sagrada.
O Evangelho Segundo São Mateus é o terceiro longa-metragem ficcional de Pasolini. Nesse momento, o diretor parecia ainda ser um herdeiro muito direto e próximo da tradição neorrealista do cinema italiano. De fato, como autor, Pasolini estava mais próximo das raízes marxistas do movimento que do realismo teísta e messiânico como vinha se desenvolvendo o cinema de Roberto Rossellini, por exemplo. Mas enquanto seus filmes de ficção anteriores, Accattone e Mamma Roma (1962), observam essas figuras urbanas marginalizadas de Roma, Evangelho parece recriar a Itália pelas lentes de suas narrativas religiosas.
Nas margens do Jordão, Pasolini se questiona sobre a sua própria presença em um espaço tão relevante para a narrativa hebraica, sugerindo que a casualidade com que visita o local histórico pode ser até desrespeitosa. Uma possibilidade fora dessa presença blasfêmica seria, ele reconhece, a imaginação desse espaço como um lugar distante, o que já haviam feito, aponta Pasolini, os pintores italianos da renascença, como Verrocchio e Leonardo da Vinci.
Eventualmente, é essa mesma possibilidade de reimaginar a Palestina, no lugar de filmá-la como locação, que atrai Pasolini de volta para a Itália. E, certamente, a tradição da pintura renascentista constituem essas narrativas através das quais Pasolini contempla a paisagem italiana em Evangelho. Mas é aconselhável recordar que nesse momento o diretor já havia sido condenado na justiça por “debilitar publicamente as religiões de Estado” em decorrência do seguimento “La ricotta”, do filme Rogopag - Relações Humanas (1963). A base para a condenação partia de um estatuto aprovado durante o regime fascista.
Ao introduzir uma edição do livro Lutheran Letters, de Pasolini, o autor Stuart Hood vê com ironia a sequência de eventos da condenação do cineasta para a produção de Evangelho, apontando inclusive para o modo o diretor omite o termo “São” no título original do filme, que se chamaria apenas “Evangelho segundo Mateus”. Nesse caso, no entanto, a apropriação da narrativa cristã não se insere em nenhuma iniciativa jocosa – e tampouco adere a qualquer projeto catequizante do cristianismo (projeto que motiva a maior parte do cinema gospel até hoje). Ao invés disso, Pasolini historiciza a narrativa cristã e a localiza na Itália, na religiosidade italiana, nas paisagens ao Sul do país, na tradição imaginativa da sua pintura.
Quando essa escolha de relocalização é descrita por Pasolini ela parece bem menos ambiciosa. O diretor relata, além das dificuldades estruturais para fazer o filme na Palestina (ele não poderia usar os hebreus como figurantes, e, segundo ele mesmo, o “rosto dos árabes” não seria muito bem representativo do “rosto cristão”, no sentido de não serem expressões disciplinadas pelo cristianismo), uma semelhança arquitetônica e geográfica com o interior da Itália. Se formos levar a sério esse gesto de apropriação, no entanto, precisamos reconhecer que se trata de uma semelhança formalmente produzida. E essa criação da semelhança já está silenciosamente implicada em uma fala anterior de Pasolini. Ora, se o renascentismo era levado a imaginar a Palestina à distância, ele o fazia com referências geográficas, paisagísticas e arquitetônicas da Itália. Imaginar a Palestina, nas narrativas cristãs que vão da pintura renascentista até O Auto da Compadecida, já implica na criação dessa semelhança.
Podemos entender o modo como Pasolini agencia essa semelhança num momento de discordância entre o cineasta e o homem religioso que o acompanha na viagem, Dom Andrea. Pasolini diz ver na paisagem palestina algo de arcaico, uma pobreza e uma precariedade que atravessa a História (nesse sentido, tanto a história da Palestina, quanto a da Itália). Já Dom Andrea percebe nesses lugares uma dignidade que Pasolini não enxerga, e os trata com o devido decoro. Se, ao tratar a história do Cristo como uma história de lugar pobre que é de algum modo tomado pela fé, Pasolini não se porta com o mesmo decoro, não podemos ainda dizer que sua apropriação é indecorosa.
É ao conceber Nazaré como esse lugar histórico e geográfico que Pasolini localiza a narrativa cristã dentro da história da Itália, um país que, seguindo a herança de seu próprio fascismo cristão, considera debilitantes as apropriações da narrativa cristã que a deslocam de seu cânone, seu dogma. Acredito que, nesse sentido, Evangelho Segundo São Mateus seja também debilitante, uma obra que desloca o Testamento para fora do domínio da verdade canônica e o relocaliza na sensibilidade histórica.