O tempo está a nosso favor?

"Bolsonaro não ganha tempo indefinidamente. O atual impasse tem um 'prazo de validade'. Há um crise política de governo. A tendência é ela ficar mais grave mo médio prazo"

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Escrito en OPINIÃO el

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Sabedoria popular do povo de língua banto kikongo 

O tempo nunca é uma variável indiferente na luta de classes. Depende do contexto da relação social e política de forças. É cruel, mas neste momento da conjuntura e nos prazos mais curtos, a pandemia protege, por enquanto, o governo. Caminhamos para cem mil mortos em agosto, e a devastação econômica continua com a precarização crescente das condições de trabalho, mas, paradoxalmente, a impossibilidade da esquerda se apoiar nas mobilizações de rua, sem que seja uma aventura de contágio irreparável, permite o governo ganhar tempo. Não podemos arriscar agora. Ainda precisamos manter a máxima prevenção diante da pandemia. A hora de ir às ruas virá. 

Mas Bolsonaro não ganha tempo indefinidamente. O atual impasse tem um “prazo de validade”. Há um crise política de governo. A tendência é ela ficar mais grave mo médio prazo. O ataque duríssimo de Gilmar Mendes ao Exército com a acusação de cumplicidade com uma política genocida no Ministério da Saúde é uma expressão aguda desta tendência. Os choques entre o governo e as distintas frações da classe dominante e as instituições diminuíram nas últimas três semanas. Mas este intervalo é instável.

Não é incomum que se confunda uma crise política com uma crise de regime. Uma crise política se abre quando diante de conflitos de maior significado, como o impacto da pandemia, o bloco de partidos de sustentação do governo se divide, expressando as pressões contraditórias das diferentes classes e frações de classe que o apoiam. A burguesia e seus aliados sociais se fracionam sobre o melhor caminho para a preservação de seus privilégios, e as parcelas mais conscientes entre os trabalhadores e a juventude veem esta divisão como uma oportunidade.

Bolsonaro acabou pegando o vírus, e foi mordido por uma ema no Alvorada. Um momento de justiça poética em tempos sinistros. A repercussão da infecção de Bolsonaro foi imensa na esquerda brasileira. Uma profunda corrente de indignação e aversão vem se acumulando contra o fascista, o que é positivo, até o ponto de desejar sua morte. Mas, sejamos lúcidos. A ilusão de que a sua morte física seria um atalho na luta contra o bolsonarismo é perigosa. Na verdade, seria mais uma dificuldade, uma complicação, um estorvo. Um hipotético óbito de Bolsonaro pela covid-19 não diminuiria sua autoridade. Ao contrário, ela aumentaria. A morte de Bolsonaro em plena pandemia faria dele uma vítima do destino, favorecendo as idealizações de um mandato interrompido, e o fortalecimento dos neofascistas. Só uma derrota política através do deslocamento do seu governo pode enfraquecer o bolsonarismo.

O governo Bolsonaro é um governo em crise política. Mas isso não significa que já estejam reunidas as condições para derrotá-lo. Nenhum governo é derrubado a frio, se a maioria da classe dominante não quer. A burguesia brasileira aposta, por enquanto, na pressão das instituições do regime para conter Bolsonaro e seus impulsos golpistas. Prefere um governo Bolsonaro sob tutela a um impeachment, e nem considera a hipótese de anulação do resultado eleitoral de 2018 no Tribunal Superior Eleitoral.

O Estado contemporâneo é um aparelho complexo de preservação da ordem que existe na forma de diferentes regimes políticos. O regime é a arquitetura que resulta do papel de cada uma das instituições. Ou a forma concreta como se estabelece o exercício do poder: qual o espaço previsto para o executivo, para o legislativo e o judiciário, além do lugar das Forças Armadas, e muitos outros etc. 

Há muitos tipos de regime: monárquicos ou republicanos, federais ou unitários, presidencialistas ou parlamentaristas e, na maioria das nações, diversas formas híbridas. Híbridas porque mesclam aspectos de diferentes regimes, amalgamam elementos diversos. 

Para o marxismo é muito importante, portanto, distinguir o que são crises de governo e crises de regime. Esta distinção remete ao tema da aferição de qual é, em cada conjuntura, a relação de forças entre as classes. Uma crise de governo se abre quando uma das instituições do regime (em geral, a mais vulnerável: a presidência, nos regimes presidencialistas; o primeiro-ministro nos regimes parlamentaristas) enfrenta a hostilidade da maioria do povo, ainda que não se tenha aberto uma situação de mobilizações generalizadas. 

A relação de forças não se resume a uma quantificação de para onde pendem, em um determinado momento, as expectativas e opiniões de uma maioria de 50% mais um dos cidadãos. A relação de forças depende, em primeiríssimo lugar, do grau de atividade sindical ou política das massas populares.   

As outras instituições podem estar, também, abaladas e, nesse sentido, uma crise de governo vem sempre acompanhada por elementos de uma crise de regime. Mas enquanto as mobilizações de massas não se unificam na escala de milhões não há ainda uma crise de regime.

Quando as outras instituições do regime mantêm-se, relativamente, intactas, podem procurar aproveitar o crédito político que ainda possuem para apresentar alternativas para a crise de governo, e encontrar uma saída nos marcos do regime. A situação pode tanto retroceder, se a solução política burguesa for bem sucedida por dentro do regime, quanto pode evoluir. Não tem consistência imaginar que toda crise de governo irá desembocar em uma crise de regime. Este tipo de cálculo, embora não seja inusitado na esquerda, é pensamento mágico. Projeta desejo como realidade. Como o projeto socialista tem pressa, porque a iniquidade do mundo em que vivemos é imensa, não é incomum. Mas é perigoso, porque as falsas expectativas são a antessala das desmoralizações. 

Quando se abrem processos de crise política as distintas frações de classe burguesas buscam acordos e alianças para reforçar as suas posições, e enfraquecer as dos seus inimigos, sempre com o cuidado de preservar o regime. Terão maiores ou menores dificuldades, se a crise política coincidir ou não com uma crise social. 

Sem crise social gravíssima, crises de governo não evoluem para crises de regime. Porque sem crises sociais sérias é improvável que uma crise política seja suficiente para despertar para a luta aberta milhões de trabalhadores e jovens, até então, politicamente, inativos ou desesperançados. As massas só se levantam com a perspectiva de que podem vencer e mudar os seus destinos.

Nessas circunstâncias de crise social, que podem ser aquelas que se desenham no horizonte dos próximos meses, a maioria dos trabalhadores e do povo compreenderá, a partir de cada confronto, aceleradamente, quais são os interesses que estão em conflito, quais são os fins que são perseguidos, e quais os meios que estão dispostos a usar. Compreenderá mais ou menos rápido, se encontrar nas organizações que reconhece como suas um ponto de apoio para avançar. Este processo é o da construção da consciência de classe. Só é possível, em grande escala, diante do choque de grandes tragédias.

Em uma palavra, a questão é saber quem está acumulando forças, e está se fortalecendo, e quem está ficando mais isolado. Neste momento da conjuntura o governo Bolsonaro se enfraquece. Enquanto nenhuma derrota decisiva venha a interromper o processo de radicalização, a sociedade se inclinará à esquerda. O que significa essa inclinação à esquerda? Significa o crescente isolamento do governo, incapaz de continuar apresentando os seus interesses, ou o seu poder, como aquilo que corresponde aos interesses gerais da nação. Neste processo de mudanças nas relações de forças há passagens que são quantitativas, e outras qualitativas.

Uma das principais virtudes do regime democrático para a dominação burguesa é que ele permite absorver, sem maiores sequelas, as disputas interburguesas como parte de uma rotina administrativa do exercício do poder. A crise pode se fechar, se o governo for capaz de rearticular novas alianças que ampliam a sua base social, ou pode se aprofundar, e se tornar um processo crônico. 

Em situações reacionárias, em que os trabalhadores estão na defensiva, e suas lutas são, portanto, de resistência, alternam-se conjunturas de maiores ou menores crises políticas, que se abrem e se fecham em função de realinhamentos partidários e parlamentares. Explosões desorganizadas e acéfalas de fúria em setores populares podem acontecer, mas serão inférteis. A tempestade no andar de cima é somente isso, enquanto as massas populares não se colocam em movimento com um programa próprio. 

Uma crise de regime é sempre algo, incomparavelmente, mais grave. Só se abre quando são já várias as instituições, além do governo, que estão em causa: os tribunais, ou a polícia, os parlamentos, as assembleias ou câmaras, e as massas perdem as esperanças de que as mudanças às quais aspiram possam ser feitas por dentro do regime. Quando não acreditam mais na espera para colocar o voto nas urnas para levar ao poder a oposição eleitoral. Quando não acreditam mais que a solução passa por entrar com petições na justiça para que os tribunais as protejam. Mas, sobretudo, quando setores organizados da classe trabalhadora decidem lutar para valer. Essa deve ser a nossa aposta estratégica.

*Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.