A crítica cria a crise. Não há aqui um problema para saber quem vem primeiro, como no caso do ovo ou a galinha popularmente conhecido. A crítica é a forma pela qual se inventa a crise.
O conceito de crise em relação à política foi criado por Rousseau. Antes, a palavra “crise” era um atributo da medicina. Contudo, o vocábulo já estava relacionado ao termo crítica, pois o estado crítico do corpo humano levaria à crise.
“Dada a concepção, então predominante, de Estado como corpo, não era algo remoto aplicar a linguagem médica da crise ao domínio da política. Mas Rousseau foi o primeiro a aplicar publicamente o termo ao grande corpo político, ao “corps politique”,[1] nos mostra o historiador Reinhart Koselleck.
Em várias passagens de seu texto, Koselleck deixa claro que a crítica burguesa forjou a crise do Antigo Regime: “A consciência pré-revolucionária da crise se alimenta da forma específica de crítica política feita pela burguesia ao Estado absolutista”.[2] “O processo seguido até então pelo Iluminismo, quer dizer, pela crítica ao Estado e à Igreja [...] ameaça agora, aberta e cruamente, a soberania estabelecida. Com a ameaça à soberania do príncipe, reconhece-se a crise política”.[3] “A crise é [...] um momento transitório, cujo desenlace já está inscrito nas categorias da crítica burguesa". “A consciência que a burguesia esclarecida tem da crise, determinada pela crítica política...”[4]
Bolsonaro tem razão ao falar da Rede Globo e, por sua vez, esta também tem razão ao criticar o presidente. Mas precisamos ser kantianos neste momento porque falar mal do governo e da mídia tornou-se um dogma, uma crítica acrítica, automática. O “uso dogmático da razão sem crítica conduz [...] a afirmações infundadas, que sempre podem ser contraditadas por outras não menos verossímeis, o que conduz ao ceticismo".[5]
Deste modo, o modelo dogmático de falar mal do governo e da mídia acaba criando afirmações infundadas de ambos os lados quando se esconde o verdadeiro causador dos problemas sociais, que seria, no nosso caso, o sistema econômico.
Rousseau criticava o Estado absolutista com base na sua ideia do homem natural benigno. O Estado imoral contamina as pessoas. Esse pensamento deu força ao liberalismo, embora a intensão de Rousseau fosse dar força ao cidadão. A crítica burguesa se apoderou do princípio rousseaneano para depredar o Estado e solucionar a crise política por meio da liberdade do comércio.
Estamos em outros tempos. Mas podemos reapropriar as ideias de Rousseau para libertar as pessoas da imoralidade do mercado. A nossa crítica deve portanto direcionar-se ao capitalismo diretamente.
Mas a mídia e o governo digladiam-se entre si para impedir a irrupção da verdadeira crítica. Bolsonaro critica a mídia e impele seus seguidores a fazer o mesmo, alienadamente, sem crítica. Nesse processo a razão da crise deixa de ser o seu governo e passa ser a mídia. A crítica cria a crise. Direciona-se, portanto, a crítica à mídia para que seja ela (não a incompetência de Bolsonaro e seu grupo) a origem da crise do país. Daí surge a ideia de que a mídia não deixa o presidente governar.
A mídia, por seu turno, concentra sua crítica ao governo para esconder o fato de que quem controla o sistema são as grandes corporações, inclusive os conglomerados midiáticos. A Rede Globo não critica as medidas econômicas adotadas. Reverencia as reformas trabalhistas, as privatizações, a Reforma da previdência. Inventou discursos de que tais mudanças iriam gerar empregos, tirar o Brasil da crise etc.. No entanto, em relação à política, adota-se uma outra postura.
A mídia sempre apresentou dois discursos. Um para a política, outro para a economia. Quando trata da política, manipula o ódio resumindo, basicamente, tudo à corrupção. Já em relação ao econômico, seu discurso se aproxima do empresário, defendendo as medidas que “salvarão” o Brasil da crise, obliterando o fato de que elas valem para salvar as fortunas empresariais em detrimento das condições de trabalho da população.
O poder midiático convence o povo através de sua interpretação da política, aproveitando-se do fato de que é na política que as emoções, os valores e, em muitos casos, a moral se encontram. O cidadão acaba pensando economicamente como as corporações midiáticas afastando-o da crítica à economia política, apresentando o econômico de forma complexa, neutra, fria e calculista.
A crítica do bolsonarismo à mídia e desta ao governo são infundadas porque o fundamento se perdeu no pântano da crítica pela crítica. Não se fala mal do governo e da mídia por meio de um método, de uma filosofia libertadora tão comum à crítica intelectualizada. Critica-se para desviar a atenção. A mídia esconde os malefícios do sistema econômico e o governo critica a mídia para tirar o foco de si. A crítica, portanto, se torna acrítica. O fundamento se encontra apenas no estereótipo de criticar o governo e a mídia não baseado em um interesse de mudança, como em Rousseau.
Por isso é preciso fazer uma crítica à pseudocrítica da mídia e de Bolsonaro que não passam de palavras feitas para vender notícias e ganhar adeptos. A missão da crítica é a transformação, sair do estado crítico da crise, e não fortalecer a obediência.
[1] KOSELLECK, R. Crítica e crise. Rio de Janeiro: Eduerj; Contraponto, 1999, p. 145.
[2] Id., p. 146.
[3] Id., p. 149.
[4] Id., p. 150
[5] KANT, I. Crítica da razão pura. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1971, p. 40.
*Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.