Continuamos a ver e sentir a morte dos nossos povos, no devido plural, sem ministério da Saúde e sem governo. Até o Trump aproveitou para dar uma bofetada no desgoverno Bolsonaro a propósito da pandemia. Bah, se fosse a ministra da Nova Zelândia vá lá, ...mas o amigo Trump! Muy amigo.
Nada tem menos valor no Palácio do Planalto e arredores, hoje, do que a liberdade. Não a liberdade abstrata da Revolução Francesa, mas a determinação individual e coletiva de se comprometer em construir a vida muito acima de interesses; portanto, uma determinação que faça ver a liberdade na explosão encarnada em direitos, compromissos, alegria, solidariedade. Por isso Weintraub grita pelo “direito à liberdade” na cacunda do grupinho de interesse. Ele não devota qualquer atenção ou um resto de amor a ela, senão como retórica de seus interesses golpistas. A “liberdade” é álibi, tramoia, o que se prova com suas práticas de anti-ministro da educação. Ele não chegou à Esplanada para ser ministro e sim para “lutar” pelo seu líder-mito.
O interesse brasiliense – que não é do povo e das autoridades como um todo – significa estar entre poderes e abocanhar a sua parte, a despeito da retórica contrária. Por sua vez, a retórica dos interessados do planalto e entorno já chegou ao nível zero de valor, pois a realidade responde a eles com toda a sua verdade, ha-emet. Veja-se o ocaso do ministério da Saúde na subida dos números mortais da pandemia, a despeito de um monte de nomeações interesseiras.
O interesse nega sistematicamente a liberdade. Jair Messias, o ocupante transitório do Planalto, formou-se, melhor, adestrou-se por longos anos em torno do mito de interesse e o levou a uma potência máxima, a fim de que seu próprio corpo fosse tomado pelo mito e entrasse na inconsciência de seus aficionados. Essa dimensão psicanalítica do mito explica porque este senhor mantém, ainda, 20% de inconscientes embrutecidos ao seu lado, os quais concordam com tudo o que ele diz e não ouvem mais ninguém. É a bruteza, a não lapidação política. No entanto, a intensa mobilização que move a sociedade brasileira irá salvando do interesse para a liberdade as pessoas que começam a entender melhor o mitobolsonaro.
O fenômeno histórico ou ficcional do mito do interesse pode ser algo relativamente sociável, mas elevado a altas potências sempre rende algumas vitórias, ou golpes, por exemplo sob a forma racista do Fascismo e da Klu-Klux-Klan, da negação da vida plena das nações indígenas ou do assassinato dos meninos pretos por balas militares e outras formas de violência. Essa potência elevada dos mitos de interesse significa, simbolicamente, uma espécie de pacto com o demônio, como se dá com a personagem Hermógenes, do Guimarães Rosa de Grande Sertão: Veredas, uma emanação do Dr. Fausto em Thomas Mann, um principium maleficum.
Se algum ministro lesse este texto daria muitas gargalhadas. Em obediência à cartilha do mito.
Característica central do mito do interesse é a negação de toda a linguagem do outro, da outra e a volúpia em manter suas próprias certezas, suas supostas verdades. Pior ainda com a Bíblia na mão, gritando pela suposta verdade e longe da mínima tsedaqah, a justiça equilibrada. Dá para entender assim a completa falta de saúde mental do presidente Bolsonaro ao afastar funcionários que restaram do antigo ministério da Saúde porque trataram de sexo, reprodução humana e outros temas da maior importância social. Justificativa: o grupo queria derrubá-lo da presidência com a introdução daqueles temas. Ao falar essas coisas todas, há um ano e meio, ele mesmo se derruba pelo non sense de sua existência, a não ser que bajuladores e grupinhos armados de interesse o salvem de sua auto-derrubada. Salvo a virada da maioria democrática, isso já se planeja.
Algum brasileiro, ou brasileira, ouviu do ocupante do Planalto, uma única vez que fosse, desculpas pelos horrores, bravatas, ameaças e palavrões que ele vociferou e continua a fazê-lo? Alguma criança, em processo de formação, ouviu alguma desculpa sobre essa profunda má-educação presidencial? Alguma vez, destoando de suas carcajadas, este senhor demonstrou sentimento de dor, compaixão ou generosidade, na medida em que vamos indo ao topo da morte no mundo? Como Hermógenes, figura horrenda, ensimesmada, vingativa e traidora, não há lugar no senhor Jair para o arrependimento, para a compaixão, para a generosidade. E tudo isso é planejado. Acresce-se que alguns pastores dos tristes rebanhos sabem disso e tramam juntos, por exclusivo interesse.
Portanto, há toda razão em imputar a este senhor o desejo de bafejar ditadura, dar golpe civil-militar e flertar com o Fascismo. Ou ainda precisamos fazer análise e interpretação de suas falas e textos?
O que se dá nesse bisonho espaço palaciano significa a elevação dos mitos de interesse a altas potências. Quem tiver dúvida, poderia se cercar de bons livros sobre o tema. Por exemplo, Roland Barthes, Northrop Frye, Mircea Eliade e tantos outros.
O pior da questão é que todos os ministros palacianos (e do entorno do executivo) estão bafejados pelo mito, pois negam tudo o que a sociedade diz, não leem nada além da cartilha bolsonarista, blefam, sinalizam reações militares bebendo e comendo da Democracia e são capazes de chegar à infâmia ao dizerem que seu presidente é “autêntico” e “espontâneo”, como se ouviu do ministro Ramos, da Secretaria de Governo. Que coisa mais fora do mundo! Será que ele já disse isso para os netos ou é somente retórica para tentar passar pela mídia?
Desde quando um principium maleficum pode ser espontâneo e autêntico? Alguém já se encontrou com um mito espontâneo? Jamais. Nele há sempre planejamento, articulação e objetivos encarnados pelos rígidos sistemas de interesse. Ora, toda a formação do senhor Bolsonaro responde a quais princípios? Alguém consegue ver, exceto na retórica palaciana, este senhor a palmilhar, por falas e gestos, estritamente nos marcos da sociedade democrática?
Pois bem, sua última estocada foi a de sugerir (via álibi do patriotismo) o não-comparecimento dos seus aficionados nos protestos do dia 7 próximo (nada a ver com a pandemia, mas dentro de um plano) para acompanhar se ocorrem grandes confusões e tumultos no campo da “esquerda” (expectativa também planejada) a fim de minar a sociedade democrática e enterrar de vez a nossa liberdade, simbolizada na Carta de 1988.
Esse trejeito golpista é velho, mas sempre útil em mãos como essas.