“quando morre um africano idoso, é como se queimasse uma biblioteca”. Hampâté Bâ.
pelo noticiário, a pequena lauriña soube que, em alguns países europeus, por conta do novo coronavírus, estavam a oferecer a cabeça dos idosos à senhora da foice vestida de negro, porque isso faria com que sobrassem leitos nos hospitais para cuidar dos mais jovens.
isso a intrigou bastante, e ela se lembra dos debates que ocorriam em sua casa contra essa absurda decisão; para a família de lauriña, não se tratava de uma escolha de sofia, mas de uma opção.
lauriña vive em uma sociedade em que tudo tem que ser trocado antes que “envelheça”. em que as mulheres se olham no espelho aterrorizadas com os aparecimentos dos primeiros fios brancos; estes serão arrancados à unha.
quando passam a abundar, são retocados com tinta de farmácia, até que, em um belo dia de sol, elas apareçam enrugadas e com os cabelos inteiramente azuis, violetas ou acajus.
é preciso apagar os sinais do tempo.
mas esse ridículo jogo de ilusão é sinal dos tempos, desses tempos onde o que importa é se parecer jovem, mesmo que já não se seja.
a velhice é vista como algo ruim, o velho é um estorvo, já não trabalha, só dá trabalho, só atrapalha, dizem.
não na casa de lauriña.
todos os dias, ao chegar da escola, lauriña joga a mochilinha no sofá, agarra o gato, rosteando caretices com ele, e se atira no colo do avô e, com os olhinhos acesos de alegria e curiosidade, lhe diz: “vovô, conta-me uma história.”
o velho benga é o griot da família, guardião da memória de tempos imemoriais.
ao tamanho da neta, ele já ouvia histórias do avô, que teria ouvido do avô dele e assim por diante.
dessa forma, a família conserva uma tradição, uma coesão, e compartilha saberes que lhes dá, a eles, uma configuração ontológica.
os benga são os benga.
eles mantém uma postura ética que remonta a um lugar onde hoje é cabinda, província que pertence a angola.
desde tempos outros, ainda no distante continente africano, os velhos são os guardiões da memória nessa família, vovó e vovô são as figuras mais importantes naquele grupo, as mais amadas e veneradas pela responsabilidade que carregam de manterem em torno de si uma unidade conceitual que são os braços que a todos abraçam.
quando lauriña ouviu falar de um tal isolamento vertical, que consistia em deixar “livres” as pessoas com energia e idade para servir aos homens de negócios e lhes ajudar a ganhar dinheiro, comprar mulheres e ter as barrigas grandes, e manter confinadas as pessoas que já esgotaram suas forças carregando esses pançudos nas costas, ela foi ter com o avô:
“vovô, por que esses homens velhos estão a dizer que se deve deixar com que os velhos morram?”
o velho benga respondeu que, na cabeça desmiolada dessa gente, o velho é sempre o outro.
na era bozozóica, um bando de mentirosos terraplanistas, antivacina, anticiência e anticultura, cultuam a ignorância e a futilidade e fazem de tudo para se apagar a memória e tentam, a fórceps, reescrever a história da forma mais tosca e incrível possível.
são tempos trevosos. o país é governado por um celerado que faz flexões de pescoço e é aplaudido a cascos por um estranho rebanho que muge a tudo o que ele relincha.
na casa de lauriña não tem essa de isolamento vertical, todos estão juntos, aninhados em família, isolados dos que tentam isolá-los.
e todos os dias têm sido de grande júbilo, porque os ensinamentos do velho benga e da senhora benguela tem feito todos se afastarem dos aparelhos eletrônicos e unirem-se numa confraternização amorável, fraterna e sorora.
ubuntu, diz o velho benga, ubuntu respondem todos.
ah, grita uma ave lá fora. uma árvore frondosa farfalha as finas folhas flácidas e, placidamente, todos vão às suas camas.
palavra da salvação.
ps: Ecléa Bosi em "Memória e Sociedade, lembrança de velhos", nos diz que memória não é sonho, mas trabalho. a memória não nos aprisiona no passado, pelo contrário, é uma ponte presente que nos conduz ao futuro com segurança.
mas ainda assim, há os que buscam o esquecimento, na invasão do iraque, os soldados estadunidenses destruíram museus e bibliotecas que guardavam registros de uma das mais antigas civilizações do mundo.
o autodeclarado estado islâmico fez o mesmo há pouco tempo, destruindo a memória à bala.
tem sido assim desde muito tempo, a ideologia sempre busca apagar o legado de outras culturas e outras civilizações; veja que eles não cansam de filmar faraós aloirados!
o desprezo ao idoso, é um desprezo à memória e, mais do que condenar o passado, é condenar o próprio futuro, uma vez que idosos, todos os que tiverem essa sorte, o serão.
#cuidadosidosos
#secuida
#ficaemcasa mas fica de boa