Início da madrugada de 21 de outubro de 2014. 00h14 para ser exato. O Tribunal Superior Eleitoral divulgava os resultados oficiais das eleições presidenciais e estaduais. Aparentemente, tudo estava normal, segundo a dinâmica do jogo político da “nova República”. PT e PSDB continuaram polarizando a disputa pelo Planalto. PMDB e DEM seguiram fortes nos executivos estaduais e no poder legislativo.
Mas se olharmos os números com mais cuidado, perceberemos que o normal já não era tão normal assim. Algo no jogo começava a mudar. Ou melhor: o jogo começava a terminar.
Chama atenção o fenômeno Marina Silva, terceira colocada na corrida presidencial, com mais de 22 milhões de votos. O importante aqui nem é a quantidade de votos, pois desde 2010 Marina já era player importante na disputa. O que impressiona mesmo foi a dinâmica da campanha eleitoral, a narrativa mobilizada.
Com pouco tempo de TV, a equipe de Marina Silva direcionou todas suas energias para o Facebook, que na época era a rede social mais popular entre os brasileiros.
Segundo a consultoria E. Life, Marina se tornou a candidata com melhor desempenho no Facebook no final agosto, quando a campanha se tornava mais aguda. Marina tinha 1,43 milhão de seguidores, enquanto Aécio Neves tinha 1,20 milhão e Dilma Rousseff tinha 937 mil.
Certamente, o desempenho de Marina Silva foi impulsionado pela comoção gerada pela morte trágica de Eduardo Campos. Os números mostram também a relevância que as mídias digitais começavam a ter na disputa eleitoral.
Em 20 de agosto de 2014, Marina Silva assumiu formalmente a cabeça da chapa. Na solenidade organizada pelo PSB, Marina disse que “era o momento de ter ousadia de sair do roteiro da política tradicional para recriar, com novos elementos e novos métodos o caminho de nossa luta pela justiça social“.
É clara a transformação no discurso em relação à campanha de 2010, quando Marina tinha o meio ambiente como mote, protagonizando aquilo que ficou conhecido como “onda verde”.
Em 2014, Marina era a candidata da renovação, a representante da “nova política”. Naquela altura, a Operação Lava Jato já estampava diariamente o noticiário nacional. Marina Silva foi a primeira a se apropriar do potencial eleitoral da crítica antissistêmica.
Por muito pouco, não chegou ao segundo turno. Se tivesse chegado, fatalmente seria eleita, pois é difícil imaginar os eleitores de Aécio Neves migrando para Dilma Rousseff.
Com pouco tempo de TV, em campanha feita basicamente na internet e falando em “nova política”, Marina Silva transformou a crítica antissistêmica em capital eleitoral, antecipando em diversos aspectos o que Bolsonaro faria quatro anos mais tarde.
E por falar em Bolsonaro...
Em 30 de outubro de 2014, assim que a eleição acabou, Jair Bolsonaro concedeu entrevista ao jornal Estado de São Paulo. Bolsonaro acabava de ser reeleito deputado federal, o mais votado pelo Rio de Janeiro, com 464.572 votos. Em 2010, tinha conseguido120.646 votos. Em quatro anos, o eleitorado de Bolsonaro cresceu 385%!
Entre 2010 e 2014, está 2013, o marco inicial da crise democrática brasileira, o berço da crítica.
Bolsonaro entendeu perfeitamente o que estava acontecendo e na entrevista lançou sua pré-candidatura às eleições presidenciais de 2018. O deputado estava convencido de que poderia ser eleito presidente da República. Apenas ele acreditava. Disse que a votação expressiva de Aécio Neves no segundo turno apontava para uma insatisfação que em pouco tempo o PSDB não conseguiria mais canalizar.
2014-2018. Foram quatro anos de pré-campanha, utilizando dinheiro do gabinete para viajar pelo Brasil. Bolsonaro seguiu a trilha aberta por Marina Silva, se apresentou como o “novo”, como o crítico ao sistema. Como mostrou Daniel Pinha, foi nesse período que o deputado de baixo clero deu origem ao mito.
Enquanto isso, a Lava Jato, ressonada pela mídia hegemônica, fixava no imaginário nacional a ideia de que o sistema político estava podre, tomado em suas entranhas pela corrupção.
Bolsonaro assumiu o controle da critica antissistêmica. Marina Silva, que optou pela via da discrição, ficou chupando dedo. Talvez Marina não tenha entendido o que estava sendo disputado. Bolsonaro entendeu. Entendeu perfeitamente.
O que havia sido um sopro em 2014 se tornou um ciclone nas eleições municipais de 2016. A crítica ao sistema, definitivamente, se tornava realidade política incontornável.
O PT perdeu 60% das prefeituras. Mas se enganou quem achou que se tratava, apenas, de antipetismo. As eleições presidenciais de 2018 mostraram que a rejeição não era apenas ao PT, mas, sim, a todos os partidos identificados com a tal “velha política”.
As eleições de 2018 foram atravessadas de cabo a rabo por uma energia política disruptiva. O PSDB, que até então era hegemônico à direita do espectro político, foi destroçado. O PMDB perdeu o Rio de Janeiro. O DEM ficou limitado a alguns nichos oligárquicos. Marina Silva virou pó. O nanico PSL, impulsionado pelo bolsonarismo, se tornou o partido com a segunda maior bancada na Câmara dos Deputados. Os desconhecidos Witzel e Zema venceram no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. O sistema partidário da “nova república” foi destruído.
O processo de destruição não começou em 2018. Já estava em curso desde 2013, se manifestando nas eleições de 2014. A partir de então, e cada vez mais, a crise brasileira seria pautada pela potência crítica. Bolsonaro deixou de ser o deputado de baixo clero para se tornar o presidente carismático, porque conseguiu se apropriar da crítica.
A questão que se coloca agora é até quando Bolsonaro será o dono da crítica.
Ao longo desses 17 meses de governo, Bolsonaro resistiu em ser presidente normal. Investiu sempre no caos, no horizonte da ruptura. Bolsonaro se apega à crítica com unhas e dentes.
Mas quanto mais tempo se é governo, mais difícil fica fugir da pecha de gestor do sistema, mais difícil fica performar a crítica. Fica ainda mais difícil quando Bolsonaro começa a sentar à mesa de negociação com o famigerado “centrão”. Waldemar da Costa Netto, Arthur Lyra, Roberto Jefferson são presenças constantes no Palácio do Planalto.
É difícil performar a crítica com a Polícia Federal na cola da família presidencial. As denúncias de Paulo Marinho parecem ser nitroglicerina pura. Não consigo imaginar que Bolsonaro continuará por muito mais tempo no controle da crítica. Não consigo imaginar como ele se sustentaria a partir do momento em que perca o controle sobre a crítica.
Sem dono, a crítica não ficará. Quem será o próximo? Tem muita gente nessa disputa. De Doria a Ciro Gomes, passando por Amoedo, Luciano Huck, Wilson Witzel e Sérgio Moro. Sem contar ainda os próprios militares, que cada vez mais ocupam o governo e já mostraram não ter muito apreço por Jair Bolsonaro.
Fato é que o próximo crítico precisará bater em Bolsonaro e em Lula com a mesma força. Precisará investir energia narrativa na criação de uma simetria entre Lula e Bolsonaro, como se eles fossem exatos opostos um do outro. Sem essa simetria, a crítica perde o sentido.
Não dá pra saber como será o futuro da crítica e é sempre prudente não se deixar levar pelo quase irresistível desejo de fazer previsões. Certeza mesmo é que enquanto houver crise, haverá crítica. A história da crise é a história da crítica.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum