Um “alerta”: este texto não é sobre coronavírus e Covid-19, embora uma notícia sobre a doença em Fernando de Noronha tenha provocado minha vontade de escrever.
São umas lembranças de minha experiência lá, quando era território federal, e umas informações ilustradas com fotos da época, que acho muito interessantes e nunca publiquei.
Fernando de Noronha foi território federal até 1988, quando a nova Constituição acabou com os territórios, passando Amapá, Rondônia e Roraima a estados, e anexando Noronha à prefeitura de Recife.
Muita gente das novas gerações não deve saber o que eram os territórios. Então, informo resumidamente: eram unidades da federação governadas por pessoas nomeadas pelo presidente da República, e nelas não havia o poder legislativo. O governador tinha poder absoluto, só respondendo ao presidente da República.
Noronha teve governos militares até que José Sarney, então presidente, nomeou pela primeira vez um governador civil, o jornalista Fernando Mesquita.
Até então, Marinha, Aeronáutica e Exército se revezavam no governo do território. Um oficial era governador com poderes absolutos. Nesse período, o território foi usado como presídio político em vários momentos. Em 1964, por exemplo, Miguel Arraes, destituído do governo de Pernambuco, foi um dos presos em Noronha.
A notícia que me “provocou”
Os jornais noticiaram que a Covid-19 foi eliminada do território, que ficou totalmente fechado durante um tempo. Terminado esse prazo, 31 trabalhadores foram levados de Recife para lá, e 12 tinham o vírus. Os mais de 3 mil moradores do território protestaram.
Aí é que está: mais de 3 mil moradores?! O território não comporta tanta gente, pensei. Explico...
Como fui parar lá?
Evaristo Miranda, agrônomo doutorado em Ecologia, criou com uma equipe um instituto de pesquisas ecológicas no território (não me lembro o nome desse instituto), apoiado pelo governador Fernando Mesquita, e tinha um projeto de recuperação ecológica do território, que estava muito degradado.
Com mil e poucos habitantes (se me lembro bem, não chegavam a 1.300), havia problemas de abastecimento e também de descarte de embalagens, entre outras coisas. Até água tinha que ir de fora, pois havia uma única mina, insuficiente para abastecer toda a população. E comida. Muitos enlatados. O que fazer com as garrafas plásticas e as latas vazias?
O certo seria “devolver” para o continente, pois o território era pequeno, mas isso não acontecia. Amontoavam-se isso tudo como lixo, inclusive acabando com o único mangue local. Trazer alimentos e bebidas, tudo bem. Mas devolver as embalagens, achavam caro.
Por isso, uma das primeiras providências imaginadas pelo Evaristo Miranda era comprar uma prensa daquelas que a gente vê em filmes, que transformam um automóvel num pedaço de ferro do tamanho de uma caixa de sapatos. Aí poderiam ser levados sem ocupar muito espaço nos aviões.
Imagino agora com mais de 3 mil moradores!!! Devem ter esquema de abastecimento etc., mas é muita gente para um espaço pequeno, a cerca de 550 km da prefeitura que o administra e acessível quase só por aviões.
Detalhe: evitavam-se embalagens de vidro, por causa da dificuldade de devolução ao continente. Assim, até a cachaça era em lata. Foi lá que vi pela primeira vez a Pitu em lata – e não gostei nem um pouquinho.
Bom... Tinham muitos projetos de pesquisa ecológica, e muita gente trabalhando neles. Um cargo importante para coordenar isso era o de uma espécie de diretor de pesquisas.
Experimentaram vários biólogos, mas cada um puxava a sardinha para a sua área. Pesquisador de tartarugas, por exemplo, destinava mais recursos para a pesquisa de tartarugas, e assim por diante. Concluíram que precisava ser alguém que não fosse de nenhuma área específica, e que o ideal seria um geógrafo.
Por isso, no início de 1987, recebi o convite de Evaristo Miranda e aceitei ir para lá com essa função. O projeto dele era muito bom.
Todo mundo funcionário público
No período militarizado, todos os potenciais trabalhadores de Fernando de Noronha foram contratados como funcionários públicos, mas... impedidos de trabalhar!
Por quê?
A ideia dos governantes era manter um controle absoluto sobre a população, e uma coisa importante para isso é que todo mundo dependesse do governo para se alimentar. Assim, pescador era contratado como pescador, mas impedido de pescar. Agricultor era contratado como agricultor, mas impedido de plantar.
Quando fui para lá, fiquei sabendo de um velho agricultor que não se conformava com isso e tinha uma rocinha escondida no meio do mato. Trabalhava nela de madrugada, para que não fosse seguido e flagrado.
Como comprar comida?
Uma vez por mês, chegava (se me lembro bem, em aviões Hércules) tudo o que era preciso para a população, de mantimentos a utensílios domésticos.
Ia tudo para uma espécie de armazém, mas tinha uma hierarquia para comprar. Quando a mercadoria chegava, o primeiro a poder fazer suas compras era o governador. Em seguida, os oficiais militares, depois os militares sem patentes, e só depois a população civil podia entrar, às vezes encontrando pouca coisa nas prateleiras, pois sobrava muito pouco para ela, já que os militares compravam quase tudo.
No governo civil, resolveram mudar isso: criaram um supermercado que seria abastecido com maior quantidade de produtos e era aberto a todo mundo, simultaneamente.
Experiência cômica, se não fosse trágica
Para abastecer o supermercado, o governo do território resolveu usar um grande navio para levar as mercadorias.
Utilizariam um navio da Marinha, daqueles utilizados em guerras, que entram nas praias, um grande “portão” se abre e saem soldados, tanques de guerra, jipes e tudo mais. Cabe muita coisa num deles.
No período em que estava lá, aguardava-se a chegada de um navio desses. Quando ele estava chegando, as autoridades do território alertaram que o mar estava muito bravo, e seria bom esperar que ele se acalmasse. Bem que tentaram, não tiveram culpa no que viria depois...
O comandante ironizou, dizendo que aquele navio, comprado da Marinha dos Estados Unidos, foi usado para desembarcar tropas no Vietnã durante a guerra. Não seria uma agitação do mar que impediria sua chegada gloriosa.
Nota: pensava que ia morar para sempre em Fernando de Noronha, mas meu emprego durou pouco. Quando estava para completar um mês lá, me informaram que minha função incluía demitir aquele monte de moradores contratados pelos militares e não trabalhavam. Discordei. Primeiro, isso não era função de coordenador de pesquisas. E depois, como eles iriam sobreviver? E se não trabalhavam, não era culpa deles.
O território estava fechado para o turismo. Enquanto se planejavam ações de recuperação ecológica, não tinha trabalho para ninguém. Insistiram que eu tinha que demitir um bando, me deram até uma lista. Gostava da visão e do projeto ecológico do Miranda, ecologista respeitado e respeitável, torcia para o sucesso do governo Fernando Mesquita, mas minha consciência me impedia de fazer certas coisas.
Aí, disse adeus, fui para o aeroporto e peguei carona num avião utilizado pelos moradores para ir a Recife. Cheio de gente de pé, inclusive.
Veja as imagens:
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum