Sobre o cinema não realista e filmes absurdos

Leia no blog Milos Moprha: "Podemos falar, ao observarmos o Brasil presente, em uma única hegemonia, um único entendimento vigente do que é real? O nosso último processo eleitoral é, afinal, prova do quanto o não realismo pode transformar o espaço vivido e até reivindicar uma revisão da realidade social"

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Este texto foi apresentado pelo autor, Cesar Castanha, na abertura do debate após a exibição da Mostra Absurda, que foi parte da programação do 12º Festival de Triunfo, em agosto de 2019. A Mostra Absurda foi produzida por Manuela Andrade com curadoria de Manuela Andrade e André Antônio Barbosa.            .

A ideia de um cinema que chamamos “não realista” parece colocar uma fronteira entre o mundo dos filmes e o mundo fora dos filmes. No primeiro domínio, habitam as transborgs, as mulheres-lobas, as pernas cabeludas e os super-heróis embriagados. No segundo domínio, está a realidade de onde esses personagens seriam, em teoria, excluídos. Nesse sentido, quando vejo uma corpa cyborg circular pelo que entendo como a cidade universitária, no curta-metragem pernambucano Transborgs, seria errado talvez suspeitar que se trata da mesma cidade universitária por onde eu circulo no domínio da realidade: o que vejo não é uma cidade universitária, mas um lugar de cores saturadas, pós-apocalíptico, lar da transborg, é um lugar que existiria supostamente apenas nesse domínio não realista.

O realismo no cinema é um evento historicamente localizado. Lógico, nós temos muito cedo reivindicações do realismo pelo cinema e o interesse por uma “forma do real”. Mas os filmes e movimentos que faziam essa reivindicação apareciam frequentemente em oposição a uma hegemonia industrial e temática do cinema – em oposição ao cinema dito “de gênero”, que repete formatos narrativos já estabelecidos, como o horror, o melodrama, a comédia, o musical, o faroeste, entre outros. Nos acostumamos a uma retórica de distinção do realismo, a entender que todo esse cinema não lida com as temáticas e personagens da realidade social, que esse cinema não realista é um cinema alienado, escapista. E como podemos discordar dessa retórica? O deserto aberto que os cowboys atravessam no faroeste é, afinal, complacente com os massacres perpetrados contra as populações indígenas, e comunidades idílicas de branquitude aparecem como cenários recorrentes de vários desses gêneros.

Exemplos como esses nos mostram que há um perigo em se escapar da realidade social – podemos, por causa dessa escapada, nos integrar a ansiedades conservadoras e legitimar sujeições reacionárias. E essa é uma leitura recorrente do não realismo, de que se escapa da realidade social para um domínio da fantasia. Outra forma de se entender o não realismo, no entanto, é que a realidade é, na verdade, distorcida pela fantasia. Podemos ver essa distorção da realidade, por exemplo, na versão de Jean Cocteau para A bela e a fera, de 1946: o castelo em que braços decepados servem como candelabros distorce o corpo do domínio da realidade; do mesmo modo, o erotismo que cerca a figura do monstro-Fera, e que está na história desde a narrativa original de Madame de Villeneuve, distorce a sexualidade normativa.

Distorcer o real não significa se referir ao domínio da realidade social por meio de metáforas cheias de significado, como dizer que a transborg representa o isolamento vivido pelo corpo trans ou que a Fera é um arquétipo para a nobreza falida. Essas leituras podem ser feitas. Não há nenhum problema com elas. Mas o não realismo não depende dessa ponte com a realidade, porque o não realismo tem, enfim, o potencial de recusar o domínio do real e produzir a sua própria realidade.

A recusa da realidade vigente e a produção de uma nova tem várias implicações mais complexas do que o mero escapismo. Em um mundo em que, por exemplo, o Deus cristão é a realidade, o não realismo produz o domínio do profano. Assim, a cada definição hegemônica do que é a realidade, o não realismo pode aparecer como um desafio a essa hegemonia. E, enquanto uma narrativa é produzida por essa hegemonia (narrativas, por exemplo, cristãs, brancas, masculinas, cis e heteronormativas), o não realismo tem o potencial de produzir uma outra narrativa.

E o potencial da narrativa não realista é também o de subverter a narrativa realista-hegemônica e contestar, assim, a ideia de uma realidade vigente. Afinal, se a realidade é algo que está fora desses produtos, uma mesma realidade compartilhada por todos, disponível para ser interpretada (uma realidade, assim, metafísica), essa realidade só pode produzir uma mesma narrativa sobre ela mesma, a da hegemonia. Mas se a realidade é maleável, se a realidade é outra, construída na alteridade, no dissenso, se ela pode ser rompida, contestada, então uma outra diversidade de narrativas é feita possível, narrativas não realistas ou de muitos realismos.

O exercício de assistir e ler essas obras não realistas não é tanto um exercício de interpretação como um de habitação. Nós habitamos essa nova realidade criada, essa outra narrativa, porque ela transforma a realidade vivida. O cinema não realista permite que habitemos não um mesmo domínio, mas uma pluralidade de domínios. Porque essa realidade transformada, essa realidade não realista, não deixa de ser assim um domínio vivido, habitado seja pelos personagens e criadores desse domínio ou por nós, espectadores, em nossa experiência com esses filmes. Acredito que temos aqui, na Mostra Absurda, realizada no 12º Festival de Cinema de Triunfo, um conjunto de filmes que cumpre esse potencial de não escapar, mas transformar a realidade vivida. Não são filmes que emudecem ou silenciam diante das problemáticas da realidade social, mas que subvertem o modo como essas problemáticas são postas em cena e que produzem uma nova realidade a partir delas.

Essas novas realidades, diversas, fantásticas, não realistas, produzem novas materialidades no espaço comum, novas narrativas que compartilhamos. Isso se dá no sentido em que cada mundo criado transforma o mundo em que habitamos. Quando assistimos a esses filmes aqui, o nosso domínio da realidade é transformado por eles. A tese de um cinema não realista que produz um domínio distinto do domínio do real ou do realismo é contestada por essa transformação do mundo vivido – mas essa transformação não é unívoca. O potencial que o não realismo tem para nos apresentar narrativas contrárias à hegemonia é o mesmo potencial que ele tem para legitimar sujeições reacionárias. Não podemos, assim, julgar o não realismo como um só, mas sim como não-realismos. Que noção hegemônica de realidade os não realismos dos filmes que veremos hoje, então, subvertem?

Podemos falar, ao observarmos o Brasil presente, em uma única hegemonia, um único entendimento vigente do que é real? O nosso último processo eleitoral é, afinal, prova do quanto o não realismo pode transformar o espaço vivido e até reivindicar uma revisão da realidade social. Um escapismo reacionário se elegeu ao contestar realidades históricas, em uma disposição revisionista, e ao produzir uma narrativa que recusa a existência de muitas das minorias que existem e resistem no país.

Ao mesmo tempo, podemos considerar que a, agora arruinada, noção de realidade nunca deu realmente conta dessas vozes dissidentes. Nesse sentido, vemos hoje um não realismo do fim da realidade ou da constatação de que essa realidade nunca existiu. Os filmes da Mostra Absurda, arrisco sugerir, se contrapõem não a uma realidade hegemônica, mas a uma outra fantasia, essa reacionária, contra quem disputam suas narrativas e suas novas produções de realidade.

Isso não significa dizer que esses quatro filmes se assemelham em uma mesma oposição a esse escapismo reacionário. Longe disso, esta sessão reúne filmes de fantasias em dissenso. Estes filmes produzem uma fantasia do fim da realidade. Recusando-se a sujeitar-se também à narrativa do escapismo fascista, esses filmes acionam formas e discursos decoloniais, antirracistas, feministas, transfeministas, queer e outras formulações tensivas entre si, mas que compartilham de uma recusa à realidade do fascismo.

Não quero soar grandiloquente nesta fala e menos ainda tomar das pessoas que criaram esses filmes o discurso sobre o que produziram. Espero ter sugerido aqui mais um conjunto de provocações sobre o que seria e como poderia operar os não realismos em oposição aos realismos ou a uma ideia de realidade do que definir com dureza esses conceitos. Mas é preciso lembrar, enfim, que o mundo que esses filmes produzem não se limitam às telas em que são exibidos.

É preciso usar espaços como este, conversas como esta, para ressignificar a nossa relação com a realidade a partir desses filmes. É preciso romper a fronteira entre os domínios e permitir que nossos espaços públicos sejam transformados pela interferência dessas personagens, atores e criadores neles; permitir que nossos espaços íntimos sejam transformados por nossa relação com essas imagens. Essas transformações não são bem-vindas apenas por sua contestação da realidade, mas pelo lugar político de onde esses filmes contestam a realidade e suas deturpações reacionárias; são bem-vindas as materialidades antifascistas que esses filmes produzem.

Quando vejo, por exemplo, Inferninho, longa-metragem cearense dirigido por Pedro Diógenes e Guto Parente, me toca essa mobilização fantástica do periférico, essa periferia com aspecto de sonho. Deusimar, a proprietária do bar, deseja deixar a precariedade desse espaço para habitar outro mundo imaginado, cidades em tela, cidades de imagem ou cidades de cinema. Esta não é uma escolha entre fantasias, mas uma escolha por transformar o seu mundo já irreal a partir da fantasia. É a escolha que podemos fazer com estes filmes.

O cinema brasileiro nos últimos anos tem confrontado a ideia de realidade e de uma produção “documental” ao produzir ficções coletivas em espaços de encenação compartilhada. Esse é o caso de filmes como Branco sai, preto fica e Era uma vez Brasília, de Adirley Queirós, Quintal, de André Novais Oliveira, e A Seita, de André Antônio, filmes que jogam dentro de uma lógica do não realismo. E é o caso de outros filmes que poderiam ser entendidos como realistas, mas que produzem também uma ficção compartilhada, como A vizinhança do tigre, de Affonso Uchôa.

Na interpretação de uma ficção, na construção conjunta de uma cena, ou de uma construção-de-cena (mise-en-scène), a relação dos atores-personagens desses filmes com o espaço é reconfigurada como cinema, e o cinema também reconfigura a si mesmo ao se colocar nessa relação de estar-junto em um espaço comum. É isso o que acontece também no filme Boca de loba, dirigido por Bárbara Cabeça, em que um grupo de mulheres interpreta uma nova relação com a cidade e, ao fazerem isso, transformam a cidade e a relação do corpo com a cidade. Este é um exemplo de uma transformação da realidade que se dá não apenas quando esses filmes são exibidos, mas também no seu próprio processo de produção.

Podemos dizer o mesmo de Transborgs, dirigido por Lilit, um filme que também encena uma nova relação com a cidade, ou uma interferência ficcional no espaço da cidade. Mais do que isso, no entanto, me chama atenção como nesse filme a ficção da corpa ciborgue é encenada no próprio corpo das atrizes, confrontando não apenas o que entendemos de uma relação do corpo com a cidade, mas o que entendemos como corpo, ou corpa, em si.

Entrepernas, dirigido por Ayla de Oliveira, vincula-se a outra tradição do não realismo brasileiro. Uma tradição mais alegórica, interessada em uma releitura das lendas urbanas e locais. A sua fantasia é assim articulada por artifícios especificamente cinematográficos: montagem, direção de arte, fotografia, personagem e texto. Enfim, construção cinemática de cena. Esse tipo de fantasia tem sido acolhida no nosso cinema e televisão por filmes como Boas Maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra, A Passagem do Cometa e Sinfonia da Necrópole, por Juliana Rojas, e Mate-me por favor, de Anita Rocha da Silveira.

As fantasias e não realismos são muitos e plurais. Nós somos convidados a eles ora por uma necessidade de revisar a ideologia hegemônica, patriarcal e branca, a partir da qual a crença do real opera – como vemos em Entrepernas. Ora somos convidados pela criação de um novo mundo, ainda histórico, ainda geográfico, em imagem – como em Inferninho. Ora somos convidados a repensar o lugar misógino, racista e de classe das narrativas produzidas (realistas ou não) e a testemunhar a ocupação dos espaços dessas narrativas – como em Boca de loba. E ora, enfim, afirmamos, a partir do não realismo, outras materialidades da imagem e do corpo – como em Transborgs. Os não realismos não se esgotam nesses filmes, mas se expandem a partir deles.