Até agora, o dia 24 de abril de 2020 foi o momento mais importante na cronologia da crise democrática brasileira. Aconteceu aquilo que já vinha sendo ensaiado há algum tempo: o divórcio definitivo entre lavajatismo e bolsonarismo.
Antes de tudo, é preciso investir alguma energia de análise na diferenciação entre lavajatismo e bolsonarismo. Nunca foram iguais. Durante algum tempo, foram aliados táticos. A partir de agora serão inimigos mortais, disputando na unha aquele que é o capital político mais valioso no Brasil dos nossos dias: a crítica antissistêmica.
Desde que nasceu, em 2014, o lavajatismo se alimenta de uma velha, e poderosa, narrativa de interpretação do Brasil que define a corrupção como o grande motivo do atraso nacional.
Só que dessa vez, a narrativa foi mobilizada com mais eficiência. Como o apoio da grande mídia, a Lava Jato apresentou ao público o espetáculo da eficiência. Grandes empresários e políticos poderosos, até então imunes à justiça, sendo algemados e presos. Como não amar?
É certo que a Lava Jato sempre foi seletiva: pegou empresários do ramo das obras de infraestrutura, mas não empresários ligados ao capital financeiro. Prendeu políticos da base de sustentação dos governos petistas, mas nem incomodou o tucanato paulista.
Mas diante do espetáculo do justiçamento, pouca gente deu importância para a seletividade. Havia sentimento de impunidade represado e a Lava Jato deu vazão a isso.
A Lava Jato venceu e convenceu a nação de que a política brasileira precisava ser refundada. A lava jato implantou no imaginário nacional um afeto revolucionário, entendendo aqui revolução como ruptura com o passado e aceleração do tempo rumo a um futuro visto como progresso.
Já em 2014, quando Lava Jato ainda engatinhava, o afeto revolucionário foi elemento importante nas eleições presidenciais. Marina Silva, sem estrutura partidária e sem tempo de propaganda na TV, falando em “nova política”, quase foi eleita. Tivesse passado para o segundo turno, fatalmente seria eleita, e com alguma facilidade. É difícil imaginar os eleitores de Aécio Neves migrando para Dilma.
Em quatro anos aconteceu muita coisa e a Lava Jato passou a pautar a política nacional, transformando definitivamente a crítica antissistêmica no mais valioso capital político. Como os bacharéis de Curitiba, naquele momento, ainda não estavam envolvidos no jogo eleitoral, a crítica foi disputada pelos que participavam das eleições, exceto o PT, que ao investir na memória do governo Lula, tentava convencer o eleitor de que o sistema ainda era viável.
Se a Lava Jato era a revolução, o PT era o antigo regime.
No segundo semestre de 2018, Jair Bolsonaro venceu não apenas as eleições. Venceu a disputa pela crítica. Ou melhor: venceu as eleições porque venceu a disputa pela crítica, porque deu forma ao afeto revolucionário produzido pela Lava jato.
Deputado de baixo clero que ficou quase trinta anos no congresso criticando a democracia e elogiando a ditadura, Bolsonaro nunca foi parte da democracia. Era, de fato, um outsider. Soube o que fazer quando o colapso do sistema caiu no seu colo. Soube performar a crítica. A nostalgia autoritária evoluiu, então, para a crítica antissistêmica com pretensões revolucionárias.
Bolsonaro foi tão competente na apropriação da crítica que a mesma Marina Silva, que continuou falando em “nova política”, foi pulverizada nas urnas. É que os votos não pertenciam à Marina Silva. Pertenciam à crítica, ao afeto revolucionário. Marina não aparenta ter a força e o carisma necessários para liderar uma revolução.
Daí vem a força política do bolsonarismo: a combinação do carisma pessoal de Jair Bolsonaro com o afeto revolucionário implantado pela Lava Jato no imaginário nacional. O bolsonarista típico se considera ator revolucionário, crítico em luta contra o sistema controlado pelos poderosos. É muito sedutor ser revolucionário. Quem não se sentiria orgulhoso em colaborar para uma revolução?
Com o divórcio, o lavajatismo quer controlar sozinho o afeto revolucionário que produziu. Ao aceitar o convite para fazer parte do governo, Moro entrou de vez para o mundo da política institucional. Ao romper com o governo, Moro entrou de vez no jogo eleitoral. Começa agora uma nova fase na disputa pela crítica.
No próprio dia 24 de abril, Moro e Bolsonaro falaram, trocaram acusações.
No dia 27 de abril, o instituto Datafolha divulgou uma pesquisa para averiguar o impacto do divórcio na opinião pública. Os tais 30% continuam onde sempre estiveram: leais a Bolsonaro. É certo que a rejeição ao presidente aumentou, com a metade a população apoiando a abertura de um processo de impeachment.
Os números sugerem que, diferente do que a maioria dos analistas pensava, Moro e Bolsonaro talvez não disputem exatamente a mesma base social.
É que há entre eles uma diferença fundamental, uma diferença, sobretudo, estética. Na política, estética nunca é apenas estética. Enquanto Moro é o bacharel limpinho, com verniz de civilização, Bolsonaro é o homem médio com barba por fazer e camisa amarrotada.
É bem provável que Bolsonaro continue sendo apoiado pelos seus 30%, o que na prática inviabiliza a tramitação do impeachment, e Maia sabe muito bem disso. É impossível derrubar um Presidente que conta com o apoio irrestrito de 30% da população.
Do outro lado, porém, está a rejeição, em curva ascendente. Essa rejeição ainda não tem dono. É aqui que Moro tende a crescer, com potencial pra agradar a direita letrada, aqueles que com nojo, fazendo ânsia de vômito, engoliram Bolsonaro até aqui.
Bolsonaro tem o apoio das milícias armadas entranhadas nas PMs estaduais. Moro tem o apoio das instituições jurídico/policiais do Estado, como Ministério Público e Polícia Federal.
Antes de disputar a mesma base social, Moro e Bolsonaro estão disputando a crítica. Eles são os donos da crítica. Essa ? uma péssima notícia, a pior possível.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum