Definitivamente, não me é possível ouvir mais o Português trôpego e semi-alfabetizado da pessoa eleita pela maioria dos conterrâneos. Ocorre que a linguagem, além do quase zero de construção formal, vocifera o mal, o divisionismo, a inverdade e a plena falta de razão. Portanto, já chegou a hora de todas as pessoas de bem do país entenderem que o único caminho viável para dizer ao presidente que ele perdeu a razão de ser consiste na associação entre o isolamento político e o enclausuramento discursivo. Quem nega a quarentena diante da pandemia, única redenção de país pouco preparado, precisa aprender algo metido na quarentena do seu próprio discurso. Noutras palavras, a etapa posterior ao panelaço poderá ser o desligamento do som e da imagem até que sua figura desapareça da tela e das ondas do rádio.
Certos tormentos discursivos graves se nutrem da atenção, não importando a atitude daquele que presta atenção. O presidente bebe e come da energia das nossas atenções diante do horror de seus discursos. Se essa energia se esfriasse (porque a presença auditiva é energia), o discurso presidencial tenderia ao zero de significação e o falar sozinho, ou no interior do pequeno grupo de bajuladores, se esgotaria e implodiria os discursos do transtornado.
Se ignorássemos tudo o que este senhor disse antes da pandemia, bastaria ter em mente que ele está a propor que as crianças e adolescentes do país sejam transmissores do novo vírus para avós, tios, professores e pais ou vice-versa, diante de moléstia desconhecida na forma dos contágios. A única lógica canhestra que ele percebe é que a saída da nova geração acarretará a saída dos demais familiares em busca do que ele, mentirosamente supõe seja “para trazer o pão para casa”. Assim, o circo do horror estará armado sob o clima mais frio do Brasil. O presidente não pensou num só momento como ficaria a cabeça dos meninos e meninas transmissores de um vírus ultra-sensível para familiares, professores etc. Não se trata de trazer pão nenhum para casa, pois nos graves acontecimentos, quando a vida está francamente ameaçada, o Estado, que é cuidador e regulador, vai aos seus limites para garantir cada vida possível, a fim de sair depois fortalecido em seu papel e preparado para reconstruir as diversas formas de vida produtiva. Ao dizer que a instituição que ele dirige não tem mais como ajudar, constrói nova mentira, pois se assume como o Estado, o que ele não é, visto que o Estado somos todos os brasileiros e os que aqui vivem.
Além de todos os defeitos de fala (sinais dos transtornos de formação), este senhor agora se revela uma figura edipiana, pois internaliza o Estado brasileiro e, consequentemente o mata na sua desrazão. Ato contínuo, pensa desde um mínimo do pensamento, que esposa a verdade do apóstolo João, mas realmente sua verdade é a morte, que ele conhece bem nas metáforas da tortura, das acusações sem prova, do terror de conspirações contra ele e da caracterização de gripezinha e resfriadozinho. Este senhor perfaz o círculo do mal e da morte e nele se compraz.
A quantos pais o governo deste presidente perguntou se é hora de sair de casa com suas mochilas rumo às creches e escolas? A nenhum pai e nenhuma mãe! Quais pesquisas seu governo tem em mãos a respeito de evidências científicas que orientem a nação a enfrentar o coronavírus no rumo do inverno? Nenhuma. Ora, isso revela o asco e o temor que este senhor devota à Ciência, quer seja a da natureza, quer seja a da cultura. Pior, se as pesquisas existissem, as vozes transtornada dentro deste senhor sugeririam a ele que as ignorasse, pois a ele, no seu fundo escuro de reclusão, não tolera qualquer luz, que é a metáfora da Ciência. E visto que ele jamais fez a leitura de uma orelha de livro teológico, a sua “verdade” antecede aos fatos e ao estudo dos fatos, como se lê no capítulo 8 de João. Este senhor transtornado passa a ser candidatíssimo à morte do Estado, também porque não há hoje no Brasil racionalidade suficiente nos demais poderes da República, tampouco força efetiva na opinião pública para mostrar por A mais B que há um poder edipiano no governo e que este combina com uma atitude alienista radical, entendida como o corte unilateral na valorização do outro, da outra, da cidadania. Nossa democracia é tão frágil, ao contrário do que pensa o senhor Luis Roberto Barroso, que um eleito pode chegar facilmente, embora transtornado, a encarnar o mito edipiano em sua relação com o Estado, se não pelos métodos tradicionais da força armada, pela “verdade” profundamente doentia de discursos corrosivos, capazes de tornar irrecuperáveis alguns baluartes da sociedade democrática como, entre outros, a transcendência da vida humana, sem a qual nenhuma democracia consegue ver seu devir, seu adiante, seu desejável ômega.
Em diálogo admirável entre o astrofísico Michel Cassé e o pensador Edgar Morin, se lê, a propósito da organização do mundo, que “ a desordem é eliminada pela luz” (p.53). Parece que nosso país, hoje paciente, ainda está a dever diante da frase de Goethe: Luz, mais luz! Não?
Indicação bibliográfica: CASSÉ, Michel e MORIN, Edgar. Filhos do Céu. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.