Se entendermos a Educação como uma forma de “preparar a pessoa para o futuro”, conceito esse que sempre discordei, como moldar um ser humano para um mundo tão incerto como esse que se transformou nesta pandemia? Como se o século 21 já não bastasse para que colocássemos em xeque esse modelo educacional que temos, apareceu um vírus que nos faz questionar o que devemos ensinar para os jovens de hoje para que eles, ao serem “soltos no mundo”, quando adultos, transforme-o em outro melhor.
Há tempos que a escola não mais deve se prestar ao papel de ser uma mera transmissora de conteúdo. Informação todos temos, literalmente, na palma de nossas mãos. Acompanhamos, em tempo real, o número de pessoas contaminadas e mortas pelo coronavírus e vimos que nem mesmo presidentes de várias nações souberam o que fazer com tanta informação. Cabe ao professor ensinar e aprender com os alunos como conectar tanta informação e transformar esse conjunto de dados em sabedoria.
O objetivo da escola, que nunca deveria ser depositar conteúdo na cabeça de nossas crianças e jovens, precisa estar ligado a coisas como autoconhecimento, primeiros socorros, inclusão social e como melhorar o meio ambiente e, por consequência, o lugar em que vivemos e quem somos. A escola deve ter, acima de tudo, um compromisso em diminuir as desigualdades e injustiças sociais e não fortalecê-las como vem fazendo há anos.
Não é necessário crescer para começar a aplicar o conhecimento adquirido em uma sala de aula ideal para esse século. O mundo está repleto de adultos que, por exemplo, não sabem de onde vêm a própria comida e não têm ideia de como se recicla o lixo. A inteligência estimulada nas escolas, principalmente pós-pandemia, deve ser aplicada no dia a dia.
A formação que devemos mais do que nunca valorizar não é mais aquela que prepara para o futuro e, sim, para o presente. Desenvolver pensamento crítico, solidariedade e criatividade em cada criança e jovem deste país me parece uma maneira melhor para se lidar com as incertezas do que, por exemplo, massacrar uma mente com resolução de exercícios que pouco se conectam com a realidade.
Nessa esteira, as aulas online que muitas escolas particulares estão promovendo – e as escolas públicas estão resistindo em aceitar para não aumentar o abismo social – são um desserviço para a humanidade. Se há algum responsável feliz com essa “transmissão de conteúdo virtual”, desconheço. No meu radar, vejo pessoas adultas angustiadas com a perda de renda, com o colapso do sistema de saúde, com a manutenção da limpeza da casa, com a preocupação para desinfetar tudo o que vem da rua, com a falta de concentração para uma leitura ou até mesmo para assistir um filme e outros problemas muito maiores, como o compromisso de alimentar muitas bocas, tentar diminuir a fome no mundo e não morrer.
Nesse cenário, colocar uma criança para fazer uma lista de exercícios de matemática me remete ao filme Titanic. A cena dos músicos tocando enquanto o navio afunda ainda não dá conta para fazer a analogia. Vejo meu filho estressado tentando entender o que a professora quer que ele responda sobre um livro que ele teve que ler em plena quarentena, e imagino alguém não com um violino na mão, mas martelando um prego enquanto o navio se quebra ao meio.
É o momento de sermos solidários e trabalhar o que nunca foi laborado decentemente, seja em muitas igrejas seja na maioria das escolas: a consciência de que todos somos responsáveis por todos. Vejo colegas professores que estão sob a responsabilidade de cuidar de alguém doente e ajudando pessoas que se encontram mais frágeis do que nós com a obrigação de mandar e corrigir trabalhinhos de várias turmas em plena quarentena. Ninguém está ensinando nada e muito menos aprendendo alguma coisa fazendo isso. Trata-se, ao menos em todos os casos que vi, de uma enganação para justificar as mensalidades das escolas.
Que tipo de pessoa estamos formando para atuar em uma sociedade que, em plena pandemia, aprende a fingir que nada está acontecendo?
Na tentativa de dar respostas imediatas à sociedade e à opinião pública, o que está sendo proposto é um formato sem qualquer debate prévio com os profissionais de educação, com as direções e equipes técnico-pedagógicas das escolas, com os responsáveis e com os próprios alunos, ignorando por completo as condições sociais reais de acesso à tecnologia de uma significativa parcela da população desse país tão desigual. Não é possível debater a Educação desconsiderando que o mundo inteiro está doente.
Não sei mais quantos caixões e dias de isolamento serão necessários para entenderem que o mundo se modificou, e que a Educação não se resume a uma mera transmissão de conteúdos. A Educação deve ocupar o lugar de ser um dos principais instrumentos para a construção de uma nova sociedade. E, se queremos algo melhor do que tivemos, não faz sentido ocupar a cabeça de ninguém nesse momento com a realização de uma prova.
O Enem, nesse sentido, precisa ser discutido, porque se ele ajudou, por anos, a colocar nas universidades pessoas mais privilegiadas, a realização de uma prova dessa magnitude na atual conjuntura é um sinal de que podemos perder a esperança de termos um mundo mais decente, depois de tanta dor e isolamento. Há estudantes sem internet, sem mesa, sem comida. Qualquer avaliação que não considere essa realidade precisa ser abolida.
Se antes já era difícil fingir que a fome não existia para ensinar equação de Torricelli e adestrar alunos para resolverem um determinado modelo de exercício que “cai na prova”, agora, sinto muito, ficou impossível. Tudo foi potencializado. O mundo que deixamos quando iniciamos o isolamento não mais será encontrado. A economia vai estar de cabeça para baixo, vários empregos não existirão mais e muitas pessoas correm o risco de ser tornarem “inúteis” com o conhecimento que acumularam, porque o mundo “pós-corona” terá outras demandas.
Já estávamos no caminho de deixar para trás uma narrativa de que nossas vidas eram divididas em antes e depois de um diploma. Aquela continuidade e a estabilidade de emprego possivelmente farão parte de um passado (cá para nós, não muito feliz). A mudança será o que teremos de mais permanente. Saber lidar com o imprevisível é o que precisaremos. Para muitos isso pode parecer assustador, afinal, como viver fora da zona de conforto? Por outro lado, passar a vida aprendendo novas habilidades pode ser um estilo de vida bem melhor do que aquele que deixamos quando fomos atropelados pelo coronavírus.
Caberá às escolas dar algumas ferramentas para que o jovem crie prazer em aprender e para desenvolver muitas formas de conseguir equilíbrio emocional. É claro que, como professora, sei que é muito mais fácil ensinar para fazer uma prova que eu mesma elaborei do que educar para enfrentar o desconhecido, pois eu também sou um produto de um antigo sistema educacional, onde me ensinaram somente a obedecer e não a criar. Mas tudo fica muito menos complicado quando tomo ciência de que o sistema educacional que tínhamos já estava mais do que falido com o advento da internet.
Pensando bem, o modelo tradicional de ensino já não prestava bem antes da internet.
As escolas, tais como foram elaboradas, são excludentes por essência e quiçá uma das principais mantenedoras de tanta desigualdade social. Não se mantém uma elite tão abastada por tanto tempo sem um grande esquema para isso. Já dizia o mestre, a falência da Educação não é um acaso e, sim, um projeto.
Que esse projeto mude. Se não for agora, ouso dizer, não será nunca mais.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum