Racismo estrutural. Essa foi a acusação nas redes sociais contra o apresentador do telejornal “Bom Dia São Paulo”, Rodrigo Bocardi. A polêmica surgiu quando do estúdio, numa entrada ao vivo com um repórter numa estação do metrô, o apresentador interviu confundindo um jovem negro como gandula de quadras de tênis do Esporte Clube Pinheiros, clube de elite paulistana. Na verdade, era atleta da equipe de polo aquático do clube. O apresentador teria dado uma mostra do racismo brasileiro cotidiano e invisível – o chamado “racismo estrutural”. O problema é que ao transformar o jornalista em “Judas” amarrado ao poste para o linchamento público, é como se assumisse a função de bode expiatório. Para expiar, purificar o jornalismo. O racismo ao vivo foi apenas um nódulo de algo mais estrutural que compõe o atual campo jornalístico: a “saga dos cães perdidos” - metáfora do jornalista como um cão que perdeu o faro e se perdeu na origem psicológica de todos os lapsos éticos da profissão: a inveja criada pela diferença de classe social diante de entrevistados poderosos ou marginalizados, o que leva a ambição de acúmulo rápido de capital simbólico: busca de autoridade e prestígio. Somado ao tautismo midiático, Bocardi mordeu a própria isca da metalinguagem autopromocional que estrutura os telejornais atuais.
Primeiro vamos aos fatos.
Na edição da última sexta-feira (07/02) do telejornal Bom Dia São Paulo da Globo, o repórter Tiago Scheuer fez uma entrada ao vivo na estação Pedro II, no Centro. A pauta era sobre atrasos e superlotação da linha vermelha do metrô.
Ele abordou um jovem negro de camisa azul e calção preto com o distintivo do Esporte Clube Pinheiros e que se chamava Leonel e que já esperava já há algum tempo por um trem: todos que passavam estavam superlotados. Tiago perguntou ao jovem a que horas era seu compromisso: “Às oito”, respondeu o desalentado rapaz.
Num rompante, nesse momento o apresentador Rodrigo Bocardi decide participar daquela rápida entrevista. Como só o repórter tinha um ponto eletrônico, pede para Tiago Scheuer fazer uma pergunta ao rapaz:
“O Lionel vai pegar bolinha lá no Pinheiros?”.
Tiago parece querer ignorar a pergunta e tenta continuar o seu trabalho de entrevista:
“Você vai fazer onde a baldeação?”.
Com uma ansiedade apoplética, Bocardi mais uma vez interrompe o repórter:
“Não! Não! Não! Ele vai pegar bolinha lá no Pinheiros?...Bolinha de tênis lá no Pinheiros, ou não?”.
Tiago Scheuer, meio sem jeito como se já pressentisse a gafe que estava se aproximando, cumpre a ordem do apresentador no estúdio: “Você vai pegar a bolinha de tênis lá no Pinheiros, o Rodrigo está perguntando...”.
E Leonel, entre já desalentado com a espera do metrô e meio surpreso com a pergunta responde seco: “Não, eu sou atleta lá no Pinheiros, eu jogo polo aquático”.
Pego de surpresa, Rodrigo Bocardi tenta contornar a situação simulando humor como se tudo fosse uma piada interna, e não uma avaliação estereotipada como se Leonel não pudesse ser um atleta como ele próprio, que frequenta esse clube da elite paulistana.
“Aí sim, tá pensando o quê?”. [Essa expressão “tá pensando o quê” foi um chiste revelador: poderíamos perguntar, “quem tá pensando o quê, cara pálida!]”.
Mas Rodrigo ainda consegue piorar a situação com a sua apoplexia:
“E eu achando que eram os meus parceiros ali que me ajudam nas partidas e tal. Joga polo aquático, olha que fera!... manda um abraço para ele...”.
Tiago Scheuer, que pareceu tentar minimizar a gafe ao vivo do apresentador, constrangido e sem jeito ainda tenta consertar: “Ah, agora entendi... Era uma piada interna”.
O jovem vira-se para os trilhos do metrô para continuar a espera, vendo-se na parte de trás da camiseta: “Polo Aquático”.
Enquanto Bocardi continua sua metralhadora verbal, tentando evitar o silêncio constrangedor que poderia aumentar ainda mais o vexame: “Agradece já logo de cara o sorrisão com que ele recebeu você aí. Como é bom, como já muda a vida. Tenho certeza de que você sentiu isso também”.
Tiago faz um sinal de positivo, mas não transmite o recado para Leonel que já deu as costas para ele.
Racismo estrutural
Imediatamente, as redes sociais começaram a ser inundadas por comentários acusando o apresentador de “racismo estrutural” - o termo designa práticas racistas que acontecem comumente no dia a dia, mas que não são percebidas com clareza por aqueles que as praticam.?
Sentindo o golpe ao longo do telejornal ao monitorar os comentários que já se acumulavam nas redes, Bocardi encerrou a edição daquela sexta de forma patética, apelando ao coração dos espectadores: “Não vamos fazer disso uma história... sobre aquele rapaz.. o.. esqueci o nome dele... o jogador de polo do clube... vamos terminar numa boa a sexta-feira...”.
A coapresentadora Gloria Vanique, até então gaguejante e rosto tenso diante do fogo que corria no rastilho, ainda tentou consertar: “não foi a cor da pele, foi a cor da camiseta...” – o atleta Lionel usava um uniforme parecido com o dos gandulas de tênis, “parceiros” de Rodrigo que costuma jogar no tradicional clube da elite paulistana.
Ao longo daquela sexta-feira, Rodrigo Bocardi percorreu o script clássico daqueles que são flagrados por atos ou declarações racistas: primeiro, dizer que veio de origem humilde e, por isso, seria imune ao pensamento preconceituoso; segundo, tentar provar que tem amigos negros: Bocardi postou uma foto cercado por crianças angolanas em 2003, período em que o jornalista morou naquele país, para provar que não é racista.
Saga dos cães perdidos
Todos voltam-se contra o jornalista em um típico linchamento virtual, como é de praxe nas chamadas “redes sociais” – nos últimos tempos, muito mais “anti-sociais”, aproximando da anomia durkheiniana.
A grande questão em tudo isso não é apenas o “racismo estrutural” – prática tão cotidiana que causa mais indignação do que surpresa. O problema é que ao transformar o jornalista em “Judas” amarrado ao poste para o linchamento público, é como se assumisse a função de bode expiatório. Para expiar, purificar o jornalismo.
Não é apenas estrutural o racismo. O constrangedor episódio de Rodrigo Bocardi é apenas um nódulo em uma estrutura mais ampla sobre o qual está construído o Jornalismo, principalmente brasileiro. Aquilo que o pesquisador Ciro Marcondes Filho chama de “a saga dos cães perdidos” - a metáfora do jornalista como um cão que perdeu o faro e se perdeu como origem psicológica de todos os lapsos éticos da profissão, apontando para a crise da antiga caracterização do jornalista: a inveja criada pela diferença de classe social diante de entrevistados poderosos ou marginalizados, o que leva à ambição desenfreada e à busca rápida de enriquecimento. Ou de acúmulo rápido de capital simbólico: busca de autoridade e prestígio dentro do campo jornalístico e diante da sociedade - leia MARCONDES FILHO. Comunicação e Jornalismo - A Saga dos Cães Perdidos, Hacker, 2001.
Soma-se a isso uma outra característica estrutural do próprio campo da mídia corporativa: o tautismo – tautologia + autismo midiático.