Enquanto recolhia os bagaços de 2020 pra última limonada, veio a playlist do Spotify com as canções mais ouvidas do ano por mim. A lista pessoal, tão insuspeita quanto imponderável, trazia nas primeiras colocações os álbuns “Boi”, de Marcelo Pretto e “Beira de Folha”, de Consuelo de Paula e João Arruda, além da canção “Seis Cordas”, de Tiago Araripe.
Meio junto aos três, de maneira quase intrusa, o lindo samba “Lucidez”, de Cléber Augusto e Jorge Aragão, na versão ao vivo onde o autor convida amigos.
De novidades mesmo, além dos três lindos lançamentos de artistas tão queridos, a canção pedrada “Living in a Ghost Town”, feita pelos Rolling Stones sobre a pandemia.
No mais, coisas antigas de sempre, que vira e mexe a gente ainda ouve, como Edu Lobo, Chico Buarque, Mônica Salmaso, Martinho da Vila, Kraftwerk, Miles Davis, Bob Dylan etc.
A constatação melancólica do imenso abismo entre as mais ouvidas em geral na plataforma e as que ouço me alertou para o isolamento dentro do isolamento. Se revelou aí, ao menos para mim, um jacaré imenso, como no gráfico das pesquisas, que foi abrindo a boca à medida em que passaram os anos.
Longe de querer parecer pedantismo, o problema no meu caso passa por outro viés. Escrevo sobre música, tento refletir o mais desprovido de preconceitos que consigo sobre o que toca, o que as pessoas ouvem e gostam. De uns anos para cá, no entanto, e de maneira cada vez mais acentuada, uma miríade de coisas que nem com muito esforço se é capaz de acompanhar, vindas, sobretudo, por obra e graça das plataformas digitais, invade o planeta em rotações por segundo.
Relatos de internautas e amigos apontam para o mesmo fenômeno: “nunca ouvi a maioria dessas coisas, não sei do que se trata”.
A impressão que fica é que cada um habita seu próprio mundo e, de acordo com seus pares, se consegue uma certa aproximação musical que acaba em diluição três passos pra lá ou pra cá. A música que deveria congregar, consagrar e aproximar se desintegra em muito mais porções do que as numerosas tribos. Ao que parece, não somos tantos pra tantos sons e vice e versa.
A canção que habita em mim não me conecta mais com a que habita em ti. E a recíproca e verdadeira.
Nem o conflito de gerações, que até outro dia dava o tom das diferenças musicais, a propalada e chata cantilena: ‘ah, música boa era no meu tempo’ existe mais. O que um ouvia no ‘seu tempo’ – como se não fosse tempo todo o tempo – é diferente do outro e por aí vai. E nos pegamos surpresos com jovens loucos por Chico Buarque e sessentões embalados pela música eletrônica.
As playlists, as mais tocadas, as “mais mais”, já não nos definem mais. Se a medição ocorrer uma fração de tempo pra lá ou pra cá ela será diferente. O efêmero atingiu seu ápice. Se ano passado não parávamos de falar na Anitta e seus funks, neste ano nos perdemos com Marília Mendonça e sua sofrência e no ano que vem, sabe Deus. A partir delas, outra sucessão de cantores, DJs e congêneres conseguem sua ponta de sucesso e se aprontam para o desaparecimento. Ou quase isso.
Posto isto, refletir sobre música popular e sua importância na vida das pessoas e das nações assumiu outra importância. Ou nenhuma importância.
Uma gigantesca onda movida pela possibilidade de arrancar cada vez mais sumo do mesmo bagaço parece reger o planeta em suas individualidades.
E, assim como nas lives e transmissões ao vivo, onde há um delay de tempo, o mundo conectado não consegue mais cantar em coro.