Em 1930, antes de completar 36 anos, faleceu José Carlos Mariátegui. Sua tão breve vida não o impediu de legar à história uma obra ampla, que quase um século depois mantém sua atualidade. Considerado um dos mais influentes marxistas da América, esse intelectual-militante – tipógrafo, jornalista, editor, historiador e filósofo – foi um pioneiro em interpretar a questão nacional latino-americana segundo os princípios do marxismo.
Comunista dialético e de práxis
Autodidata erudito, o pensador peruano ainda bem jovem se declara um comunista “convicto e confesso”. Em seus escritos teóricos, pode-se apreciar o exame minucioso dos conflitos e contradições socioculturais do período entreguerras – tanto relativos à sua realidade periférica andina e latino-americana, como acerca de questões do centro do mundo capitalista, que ele conheceu de perto.
Em sua polêmica filosófica “Defesa do marxismo” [1], afirma que suas investigações histórico-científicas e filosóficas se guiam pela metodologia dialética: o marxismo “não é um itinerário, mas uma bússola”, “pensar corretamente é, em grande medida, uma questão de direção”.
Por outro ângulo, enquanto homem político revolucionário, Mariátegui valorizou o princípio ético da práxis como sendo o núcleo do pensamento começado por Marx e Engels. Entende que a teoria só se verifica na prática, e nela se corrige; que ao existir na realidade, a teoria transforma o mundo real, sendo por sua vez transformada por este novo real.
Segundo manifesta em suas reflexões críticas à “passividade” da Segunda Internacional (parlamentarista, pacifista), Mariátegui não escreve porque meramente aprecia ou deseja escrever, mas porque precisa dizer: porque se sentia eticamente compelido a comunicar o que analisara, o que descobrira. Para ele, as “certezas positivistas” (a pretensão cientificista por uma verdade exata e única) do socialismo da Segunda Internacional são uma “fossilização” acadêmica do marxismo [2].
Trata-se de uma postura existencial combativa (ativa, de luta), tão oposta ao conformismo de certo marxismo academicista, regular, “profissional” – com sua crítica acomodada pelo hábito da boa posição intermuros, com sua moral de pena limpa que, ao meramente escrever sobre realidades que não vivencia, limita sua própria crítica, e mais: isenta-se da autocrítica com que poderia vislumbrar seu próprio elitismo (na prática social concreta do cotidiano).
Eis a contraditória corrupção do “marxismo asséptico” a que Mariátegui tanto criticou, um “marxismo” sujeitado aos moldes capitalistas da competição (intelectual, midiática). Um “marxismo” autorizado pelo sistema que continua “validando” os discursos acerca do que “é” ou “não é” verdade. E isto, sobretudo em certos meios vira-latas periféricos (editoriais, acadêmicos), que continuam copiando e idolatrando o que vem de fora. Veja por exemplo a sintomática proliferação – até no campo das “esquerdas” (!) – de publicações filiais de meios estrangeiros (revistas e portais que sequer ousam modificar o nome de sua matriz estrangeira).
Mariátegui na história
Desbravador de um marxismo atento às peculiaridades da realidade americana colonizada, Mariátegui exerce até hoje grande influência sobre variados movimentos sociais, de agrupamentos de resistência camponesa e indígena, a grupos de distintas tendências socialistas.
Aliás, por incrível que pareça, ele é aclamado inclusive por “liberais”, como instituições oficiais, políticas e culturais peruanas, que se vangloriam de seu “grande nome das letras nacionais” em arrastados textos “históricos” que sequer mencionam sua posição político-filosófica marxista.
Quase um século depois de seu decesso, a herança mariateguiana pode ser observada hoje pelo mundo e se expande – como se vê na crescente pesquisa sobre sua obra que tem se desenvolvido no Brasil, América Latina e até mesmo no centro capitalista – em espaços normalmente dominados pela anglofonia.
Seu pensamento se faz presente nos debates políticos e táticas de ocupação comunitária (de latifúndios) do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra do Brasil (MST), na ideologia guerrilheira autóctone do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), ou mesmo na tática ofensiva de grupos armados, como os marxistas-leninistas das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia–Exército do Povo (FARC) – guerrilha de meio século hoje rachada entre um movimento político legal e uma parcela que dá continuidade à “crítica das armas”.
Além desses exemplos, como bem observou a professora Zilda Iokoi, é simbólico o caso do “Partido Comunista de Perú por el Sendero Luminoso de José Carlos Mariátegui” (PCP-Sendero Luminoso), histórica guerrilha camponesa de tendência maoísta que, apesar de só parcialmente se apoiar no pensamento do autor (a quem homenageia), procurou articular a “estrutura do processo da Revolução Cultural” chinesa com os “princípios da mística andina” [3].
Formação política e contexto histórico
Nascido em Moquegua (Peru), em 1894, Mariátegui se muda cedo para a capital. Sua mocidade se dá em um momento histórico conturbado. Por um lado, com a Primeira Guerra Mundial, as potências capitalistas tinham levado a humanidade a conhecer uma de suas maiores carnificinas. De outro, na Eurásia, a Revolução Bolchevique propunha na prática uma alternativa às misérias gritantes do capitalismo.
Ele inicia a carreira profissional como tipógrafo aprendiz, no diário “La Prensa”, ainda adolescente. No prelúdio da Primeira Guerra, se lança na escrita, elaborando críticas literárias e versos. Pouco depois já publicaria seus primeiros artigos políticos.
Com a atividade jornalística, se aproxima do movimento operário, que se gestava desde o fim do século XIX – de linha anarquista bakuninista, migrado à América por militantes europeus.
Destacando-se como jornalista, Mariátegui em 1916 se torna cronista regular do jornal “El Tiempo”, dedicando-se ao embate político, denunciando a “democracia mestiça” de fachada – a demagógica fonte de “divertimento” que tinha a função de desviar a atenção do povo quanto ao fato da burguesia da costa peruana, aliada aos grandes proprietários rurais, tornar o país cada vez mais um “setor colonial” do imperialismo estadunidense.
Esta foi uma época de grande alta nos preços dos alimentos. Em consequência do mal-estar popular, a movimentação operária se fortalece. Os escritos de Mariátegui – já de tendência socialista, embora ainda não “marxista” –, apoiam as greves, criticando a classe dirigente limenha.
Em 1918, em Córdoba (Argentina), começa um intenso movimento pela Reforma Universitária, manifestações que abrangeriam todo o continente. Entusiasmado, o pensador andino afirma ser este o “nascimento da nova geração latino-americana” [4].
Outro marco mariateguiano na política peruana foi a fundação revista “Nuestra Época” (1918), publicação que não traçava um “programa socialista”, mas aparecia como um esforço ideológico nesta direção. Mariátegui dava então início a suas atividades como editor, o que perfaria importante parcela de sua atuação política de orientação socialista.
O fim da Primeira Guerra assinala na América Latina, e no mundo, um período de agitação da classe trabalhadora. Mariátegui, em 1919, funda o jornal “La Razón”. Neste mesmo ano, uma greve geral é reprimida com violência e prisões de líderes operários. Inicia-se no Peru uma década de populismo direitista – economicamente pró-ianque, mas que flerta também com parte do movimento indigenista.
A defesa de líderes operários presos, promovida por Mariátegui através de seu jornal, faria com que ele fosse aclamado em Lima por uma multidão. Um mês depois, seu periódico é fechado e Mariátegui é discretamente deportado à Europa, sob o discurso oficial de “propagandista do Peru no estrangeiro” – um exílio “conciliador”, já que coincidentemente ele (de origem trabalhadora) era parente da mulher do presidente.
A Europa: uma mulher e algumas ideias
Mariátegui segue viagem, rompendo com suas primeiras experiências de literato “contaminado de decadentismo” (como depois expressaria em autocrítica). A partir de então, volta-se “resolutamente ao socialismo”. Passará três anos em viagem pela Europa, conhecendo alguns países do Leste e do Oeste, em especial a Itália – onde passa a residir.
Em meio à influência da conjuntura ali vivida – na qual ecoava alto a Revolução Russa – a Europa o aproxima das obras de Marx, Engels e Lênin, além do movimento comunista italiano e do surrealismo.
No Partido Bolchevique, Mariátegui enxerga a convergência entre teoria e prática, entre filosofia e ciência. Afirma ser Lênin “incontestavelmente” o revigorador “mais enérgico e fecundo do pensamento marxista” [5].
Durante esse período italiano, Mariátegui afirma ter se casado com “uma mulher e algumas ideias”. Sua companheira, Ana Chiappe, lhe transmite um “novo entusiasmo político” que o ajuda a superar seu juvenil decadentismo de fim de século [6].
A família de Ana é próxima à do filósofo Benedetto Croce, por meio de quem conhece a obra de Georges Sorel, um sindicalista revolucionário de quem aprecia a ideia do “mito da greve geral”, bem como sua defesa ética da “violência revolucionária” contra a “violência instituída” [7].
Na convulsiva Itália, presencia ocupações de fábricas e congressos de trabalhadores, além de se aproximar do grupo da revista “Ordine Nuovo”, dentre o qual figurava Antonio Gramsci. Por este tempo, vivencia a criação do Partido Comunista da Itália, estreitando contato com o pensamento gramsciano e de outros marxistas italianos (como Terracini).
Fascismo: consequência da decrepitude social
A estadia europeia de Mariátegui foi também um mirante donde pôde observar o Oriente. Desde a Revolução Chinesa e o despertar da Índia, aos movimentos árabes e diversos grupos resistentes do pós-Guerra. Nestes acontecimentos, percebe o declínio da envelhecida sociedade ocidental moderna.
Sua análise sobre a decrepitude moderno-ocidental ganha força quando observa de perto a ascensão fascista italiana. No fenômeno, logo identificaria uma resposta do grande capital a uma crise social e política profunda: a “crise da democracia”.
Note-se que, se no início de sua estada europeia, Mariátegui traz a humildade de um discípulo aberto ao centro do pensamento moderno, progressivamente ele passa a se decepcionar com os infortúnios que presencia na Europa, passando a assumir uma “perspectiva antropológica invertida” (de sujeito periférico que analisa criticamente a cultura eurocêntrica dominante).
Com tal olhar reverso, o marxista latino-americano logra captar detalhes da crise ocidental que eram, até então, negligenciados pelos próprios europeus. É o caso da decadência da dita “democracia burguesa”, que ele logo concebe como sendo uma nova farsa a se redesenhar com os traços autoritários do fascismo.
Para Mariátegui, o fascismo foi a solução encontrada pela ordem burguesa como reação à “crise da democracia”; ou de outro modo, uma adaptação estrutural diante dos novos tempos de imperialismo monopolista, em que a democracia-liberal com suas instituições parlamentares, já não servia aos interesses da burguesia [8].
Marxismo intuitivo: por uma crítica da impotência burguesa
Em paralelo a toda esta efervescência sociopolítica, Mariátegui tem na Europa acesso às obras de pensadores como Freud, Nietzsche, Unamuno. Interessa-se muito pela recém-criada psicanálise, bem como pela filosofia intuitiva do filósofo alemão – sobretudo no que tais análises ajudam a compreender a evidente irracionalidade humana. Nestes pensamentos ele encontra ferramentas críticas para a denúncia da alienação, da impotência e artificialidade do homem moderno: um ser castrado, inserido em uma repressiva estrutura sociocultural burguesa e cristã.
Entretanto, antes que os puristas do academicismo marxista o acusem: o marxismo de Mariátegui se manteve fiel aos princípios do materialismo-histórico, jamais flertou com nenhuma proposta de síntese eclética, mas se utilizou de alguns específicos conceitos psicológicos e filosófico-vitalistas como instrumental auxiliar em sua empreitada contra o reformismo e o determinismo mecanicista (ou seja, contra a mencionada fossilização acadêmica do marxismo).
É a partir da enorme tragédia da Europa que Mariátegui viria a compreender com nitidez o alcance histórico da tragédia da América. Quando retorna a Lima, em 1923, o ainda moço pensador já defende abertamente a causa comunista.
[Continua…]
Notas (parte I)
[1] MARIÁTEGUI. J. C.; MARTINS-FONTES, Y. (org., trad. e introdução). Defesa do marxismo: polêmica revolucionária e outros escritos. São Paulo: Boitempo, 2011.
[2] Sobre o tema: MARTINS-FONTES, Y. Marx na América: a práxis de Caio Prado e Mariátegui. São Paulo: Alameda/Fapesp, 2018.
[3] IOKOI, Z., “A atualidade das proposições de Mariátegui, um revolucionário latino-americano”, em Projeto História (PUC-SP, 2005).
[4] MARIÁTEGUI. J. C. Sete ensaios de interpretação da realidade peruana. São Paulo:
Expressão Popular/Clacso, 2008.
[5] Defesa do marxismo [idem].
[6] MARIÁTEGUI. “Apuntes autobiográficos”. Em La Vida Literaria, maio de
1930, Buenos Aires.
[7] Marx na América [idem].
[8] “Crisis de la democracia”. Em La escena contemporánea y otros escritos (Obras completas/
tomo I). Lima: Editora Amauta, 1925.