2020 foi um ano que nos botou medo e nos colocou diante de nossa própria humanidade.
Tivemos, coletivamente, um grande medo da iminência da morte. Medo da dor. Medo da falta de ar e de horizontes. Medo da falta de quem amamos.
Medo de sermos responsáveis de menos ou irresponsáveis demais.
Medo de transmitirmos o vírus sem saber. Medo de sermos contaminados apesar de nossos cuidados.
Medo da fluidez de nossa ignorância e da densidade de tantas informações.
Medo de sermos maricas. Medo de sermos covardes.
Medo, muito medo, da violência dos negacionistas e dos monstros que aparelharam o Estado para subtrair a própria nação.
Este foi um ano que nos botou todo tipo de medo.
O vírus nos deu medo e, mais do que sua letalidade, nossa impotência diante dele revelou nosso flerte com a própria desumanidade.
Descobrimo-nos impotentes como seres humanos e, principalmente, impotentes como sociedade, sobretudo em alguns pedaços do planeta onde informação e ciência foram desprezadas com escárnio.
Eu chorei pelos meus filhos. Eu tive medo de que eles não metabolizassem este ano difícil como toda infância merece fazer e, assim, seguissem à diante sem um pedaço (idealizado por mim) da própria vida.
Tive (e tenho) medo de que eles não sobrevivessem ou de que não pudéssemos comemorar juntos o próximo aniversário, o próximo outono, o próximo título de nosso time. E esse medo não tem a ver com minha incapacidade de compreender o tamanho da tempestade, mas pela certeza de que sou pequeno demais para enfrentar de peito aberto e solitário a incontinente força dessa enxurrada.
É preciso criançar
Nos meus melhores sonhos, as crianças são seres que devem desfrutar da plena capacidade de inventar mundos, degustar sabores inesquecíveis e hastear bandeiras ao impossível, celebrando com brilho a certeza de que a vida vale a pena. Nestes sonhos, a nenhuma criança é negado o direito à memória e à certeza de que o mundo é bom e que seus saberes e sabores pertencem a todas as pessoas.
Mas, em 2020, foi negado às crianças o direito de criançar, com tudo o que esse verbo do qual tanto gosto pode expressar. Não puderam criançar plenamente porque tiveram de ficar com portas e janelas trancadas para o abraço, para o beijo largo, para o chamego farto, para castelos de areia e nuvens de algodão.
Não puderam criançar porque o ato de criançar é um ato concebido e praticado em ambiente coletivo. Para criançar, é preciso conceber a própria vida como parte do comum, como uma fábrica de experiências que configuram ao mesmo tempo, ética e esteticamente, novos modos de sentir e de pensar.
Somos, todos e todas, crianças assustadas diante do risco da dor e do medo da morte e, assim, também tivemos interditadas as nossas possibilidades de criançar. As artes, categoria privilegiada de nossos criançares, ficaram em suspenso e seguem sob grande risco, não apenas pelas restrições à fruição coletiva, mas, principalmente, pelo pesado obscurantismo quem trata de aprisionar o mundo numa moralidade e tacanha.
A consequência disso tudo é direta: se não criançamos, também não conseguimos tatear fartamente as possibilidades de empatia.
É exatamente aí, na nossa (in) capacidade à empatia, que é tencionada nossa disposição a nos manter humanos. Não à toa, George Orwell, hoje novamente tão atacado, certa vez disse que “o mais importante não é manter-se vivo, mas se manter humano”.
Mais que vivos, humanos!
2020 talvez tenha sido o momento mais próximo da transformação dessa frase em desafio: mais que vivos, humanos!
É na disposição à empatia que nos habilitamos como partícipes de uma mesma espécie. É na capacidade de nos colocar no lugar do outro, de nos constrangermos ao uso de máscara para evitar que nosso vizinho seja contaminado por nosso bafo, de nos restringirmos a uma saudação distante para não afetar nossos amores com afetos de morte que manifestamos nossa humanidade.
2020 nos convidou a observar aqueles que, por estarem absolutamente desconectados com a ideia de humanidade, querem esgotar a potência de vida em abraços flamejantes e aglomerações potencialmente fatais.
Mas, além desses, há outros tantos que, mesmo enfrentando riscos e medos, e apesar deles, optaram por outros criançares: mais discretos, mais domésticos e mais humanos. Essas pessoas ou, noutros termos, esse tipo de gente, são aqueles que entenderam que existe um fio invisível que liga a disposição a criançar, à certeza de que a opção pela humanidade e seus valores é uma decisão pela política.
Política como opção
Entraremos em 2021 sem nos despir de 2020. Ainda em janeiro e mais além, estaremos às voltas com essa costura do tempo. Uma costura que mais esgarça o tecido do que veste o tecelão. A expectativa da vacina, a aceleração de mortes, a disputa de narrativas em torno da pandemia e do gigantesco caos nacional nos fará seguir tentando costurar um ano que insiste em não terminar ao início de outro. Será um ano novo com cheiro de velho e muitos corpos insepultos a turvar o nosso olhar.
Assim, ao costurar um ano ao outro, um sonho ao outro, silêncios profundos a criançares eloquentes, estaremos fazendo uma política, inclusive porque costurar é também uma forma de partilhar e disputar o sentido das coisas e da vida.
Sob a afirmação criançar é uma opção pela política e pela humanidade enuncia-se um conjunto de ideias. Ao brincar a criança nunca é inconsequente: aquilo é o que há de mais sério. A opção pela política é sempre uma opção por uma consequência ampla e que possa se reproduzir no tempo e no coletivo. Optar por aquilo que carregamos de absolutamente humanos é uma opção genuinamente política.
Ao optar por despolitizar a política, por empobrecer o caráter público dos discursos feitos ao (ou em) público, ao reduzir a noção de bem comum a uma categoria moral, tenta-se erigir verdades que não produzem transformações éticas relevantes[1]. A transposição da política, algo próprio do terreno das experiências coletivas e públicas e, portanto, lastreada pelo interesse comum que é naturalmente diverso, aos domínios das lógicas religiosas (bem e mal, céu e inferno, certo ou errado, eu contra nós) é, não apenas a negação a criançares diversos, mas a negação à própria possibilidade da costura do nosso tempo ser efetivamente humana.
A história da humanidade é repleta de crueldades. Mas é, também, repleta de possibilidades. Não haverá um novo tempo se o que vier estiver ancorado numa noção de tempo imutável. Não haverá criançares se não houver a possibilidade de esperançarmos, ou seja, de derrotarmos planetariamente essa pandemia e praticarmos a esperança como construtora de futuros.
2020 termina nos convidando a sobreviver.
Haverá vacina. Ponto. Vamos a ela.
Tomaremos a vacina para que tenhamos tempo de nos redescobrir humanos e nos reconectar com nossa humanidade. E faremos isso com a desconfiança de que outras pandemias virão, outros vírus mortais nos abaterão e que, em outros momentos, outros medos tentarão nos derrubar. E ainda assim, mais do que sobreviver, estaremos prontos para semear esperanças solidárias.
Será assim que descobriremos que, se não soubermos inventar novos criançares, mesmo com medo, se não soubermos ser empáticos, mesmo sob riscos, estaremos renunciando àquilo que nos dá sentido.
Que 2021 chegue manso e nos encontre ainda mais humanos.
Vida longa pra gente!
[1] Sobre isso, ver Christian Dunker em Subjetividade em tempos de pós-verdade. In ÉTICA E PÓS-VERDADE, Porto Alegre : Dublinense, 2017.