Em mais uma de suas falas e aparições bizarras, o presidente Jair Bolsonaro disse esta semana, num encontro da Convenção Estadual das Assembleias de Deus da Bahia, que “acima da nossa Constituição está a nossa fé, está aquele livro conhecido como Bíblia Sagrada.” Há tantos erros nesta cena que eu precisaria de muito mais que uma coluna pra falar sobre isso, mas tentarei resumir algumas coisas aqui.
Em primeiro lugar, esta fala só caberia em uma única situação: desobediência civil em caso de uma lei injusta, onde os princípios maiores da Bíblia, que são o amor e a dignidade humana, fossem necessários para combater uma injustiça notória. Um caso clássico: a desobediência de Rosa Parks em cumprir uma lei nefasta de segregação racial. E mesmo assim, com ressalvas, pois não é preciso ser cristão para defender a dignidade humana, no entanto é impossível ser cristão sem defendê-la.
Continuemos. Essa fala é totalmente incabível, absurda e perigosíssima vindo do presidente da República que, por força do cargo, está sujeito à Constituição e não o contrário. Bolsonaro não é pastor, é presidente. E mesmo se fosse pastor, em solo brasileiro, deveria estar sujeito, como cidadão, à Constituição Federal. É uma fala carregada de segundas intenções e que fere frontalmente a instituição da Presidência da República.
E ainda tem mais... “Aquele livro conhecido como Bíblia Sagrada” em todo seu conteúdo condenaria o governo nefasto e perverso de Bolsonaro. É um livro que traz como norte a luta pela plena liberdade humana, pela dignidade de todos, o Direito para todos, o pão para todos, a condenação da riqueza excessiva, o cuidado com os mais pobres, a plena realização de uma justiça que seja equânime e igualitária, mas Bolsonaro prefere usar esse livro como mera figura de linguagem diante de pseudopastores que também utilizam-se desse livro para perpetuarem seus “negócios em nome de Deus”.
Ainda poderia levantar algumas outras questões, por exemplo, quanto a junção de Bíblia e defesa da família no mesmo discurso. Que modelo de família da Bíblia devemos seguir? A de Abraão, o “pai da fé”, que tinha mulher e concubina? A de Jacó, que dá nome a uma nação (Israel), com duas mulheres, além de escravas que também atendiam sexualmente seu “dono”? A do grande Rei Davi, com 7 mulheres? A do sábio Salomão, com 300 esposas e 700 concubinas? São todos “modelos” de famílias bíblicas. Leitura literal por leitura literal da Bíblia, podemos escolher o que aplicar?
Isso para dizer que “Bíblia” na boca de Bolsonaro é só e apenas um “elemento do discurso”. Ele nunca se importou de verdade com esse livro, como os pastores que o aplaudem também não se importam, eles nem acreditam na Bíblia. É apenas uma peça decorativa para fotos e um passaporte que lhes dá o direito de manipular a fé de gente simples e inocente, infelizmente guiada por estes. São cegos guiando cegos, e como Jesus diz, ambos cairão por aí...
Ainda bem que, por enquanto, temos a Constituição...