Esta semana foi bastante traumática. Se já não bastasse a obrigação de todo um país em combater o racismo estrutural todos os dias, o destino ainda traz tamanha tragédia justo na véspera do Dia da Consciência Negra. “Destino”? Não! Esta, decerto, é a palavra equivocada para falar sobre isso, ainda mais depois da declaração do presidente Jair Bolsonaro de que “tais tensões são alheias à nossa história”, renegando a possibilidade de racismo no crime do Carrefour, de forma bastante conivente. Não é destino termos um governo federal eleito pelo povo que deveria pensar melhor antes de votar e legitimar essa opressão criminosa através de seu livre arbítrio... Mesmo que, hoje, muitos destes mesmos eleitores se digam arrependidos e aleguem compor a frente dos 70% contra a Presidência atual.
Curiosamente, esta semana também foi eleito o candidato brasileiro a nos representar no Oscar 2021, na categoria de melhor filme internacional, escolhido pela Academia Brasileira de Cinema. Dentre os 19 filmes elegíveis (confira lista completa aqui), não por coincidência, estava a obra “M8 – Quando a Morte Socorre a Vida”, de Jeferson De (2019), longa-metragem que fala justamente sobre violência policial e a invisibilidade do genocídio diário da população negra (estreia no circuito em 3 de dezembro). No filme, um jovem estudante de medicina que disseca cadáveres todos os dias em aula percebe que seus colegas de classe podem ser quase todos brancos, mas que os corpos anônimos doados para a faculdade são predominantemente negros, como ele. A trama gira em torno da investigação e envolvimento nos trâmites e injustiças que levam inocentes a morrerem e que poderiam quase levar a vida do protagonista por resistir e lutar contra a opressão.
Infelizmente, tal filme acabou não sendo eleito para nos representar, mas o escolhido, vencedor ano passado de direção no Festival de Veneza, “Babenco – Alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou”, de Bárbara Paz, acaba vencendo também outro estigma de preconceito no nosso país, pelo fato de ser apenas a quarta obra dirigida por uma diretora mulher a ser selecionada em 60 anos desde a primeira tentativa brasileira (confira lista completa aqui). As outras foram Suzana Amaral, com “A Hora da Estrela” em 1986, Kátia Lund, por “Cidade de Deus”, em 2003, codirigido por Fernando Meirelles, e Anna Muylaert, por “Que Horas Ela Volta?”, em 2016. E, ainda por cima, é o primeiro documentário a nos representar num gênero tão forte no Brasil, mesmo diante de um longo monopólio do cinema de ficção.
Vale ressaltar para aqueles que estão se perguntando onde “Bacurau” se encaixa nisso que, tendo já sido preterido nesta mesma categoria ano passado perante a escolha brasileira por “A Vida Invisível”, de Karim Aïnouz, para nos representar, o novo cult de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles estreou em território norte-americano para tentar indicações nas demais categorias, como “Cidade de Deus” fez em 2004, ao ser indicado como melhor direção, fotografia, montagem e roteiro adaptado.
E, de fato, estas questões e recortes afirmativos serão cruciais para determinar o reflexo dos anseios populares atuais no reconhecimento dos filmes que desejamos, que nos representem na telona, ou no streaming, com a atual realidade quarentenada do formato online. Por exemplo, este que vos escreve, esta semana, foi jurado no Festival Internacional de Cinema de Estocolmo e pôde entregar o Prêmio Fipresci online para o coreano Hong Song-Soo, por “The Woman Who Ran” (leia mais aqui). Porém, concorrendo com ele na mesma mostra, ou mesmo em outras seções do festival, havia inúmeros fortes candidatos ao Oscar 2021, em diversas categorias, como o filme de encerramento, “Nomadland”, da diretora chinesa radicada nos EUA Chloé Zhao (cineasta que vem usando seu olhar contra-hegemônico para renovar o circuito cinematográfico, com obras desde o cult “The Rider”, ao cinema mais comercial, no qual em breve lançará o filme da Marvel “Os Eternos”.
Além de Chloé, que já faturou o prêmio de melhor filme nos festivais de Veneza e Toronto (uma dobradinha que significa um feito histórico) o Festival de Estocolmo também trouxe “One Night in Miami”, da oscarizada atriz e agora diretora Regina King (“Se a Rua Beale Falasse” de 2018 e “Watchmen” de 2019), cotada em todas as bancas de apostas para ser a primeira mulher negra indicada na categoria de melhor direção, ainda mais com um filme sobre um encontro ficcional de Malcolm X, Muhammad Ali, Jim Brown e Sam Cooke em um quarto de hotel em Miami, em fevereiro de 1964, celebrando a surpreendente vitória de Ali sobre Sonny Liston. Aliás, Regina não caminha sozinha nesta representatividade, pois o longa “Ma Rainey's Black Bottom”, de George C. Wolfe, promete ser a principal aposta da Amazon Prime Vídeo às indicações oscarizáveis, especialmente com o melhor ator para o saudoso Chadwick Boseman (com grandes chances de levar uma estatueta póstuma, como Heath Ledger por “Batman – O Cavaleiro das Trevas” em 2009) e melhor atriz para Viola Davis.
O fato é que se torna inviável qualquer premiação ou festival estar alheio a estas questões urgentes em nossa sociedade, correndo o risco de já nascer datado ou não representar a mais ninguém, ou mesmo de apenas reforçar o racismo estrutural e outras intolerâncias igualmente criminosas. Afinal, podemos dar exemplos positivos e construtivos nesta questão no Brasil também, como o Festival de Cinema de Vitória, sempre atinado com os tempos presentes, cuja vindoura 27ª edição será online, pela plataforma InnSaei.TV (clique aqui), com o tema “Sonhar Colorido Faz Bem”. Anunciado inicialmente com 84 obras, distribuídas por 12 mostras, sempre bastante inclusivas, agora, tais números aumentaram com 17 obras da Mostra Audiotransvisual, organizada em parceria com a Mídia Ninja, recém incorporada pelo Festival de Vitória, compondo 101 filmes em 13 mostras extremamente plurais (seleção completa aqui).
Portanto, trouxemos um bate papo exclusivo com a diretora do Festival, Lucia Caus, e com uma das representantes da Mostra AudioTransVisual, a atriz e diretora Danny Barbosa, de filmes como “Bacurau” (2019).
Revista Fórum – O Festival de Cinema de Vitória está chegando com toda a importância na democratização do acesso à cultura e como um polo crucial de produção capixaba. O que esse histórico de formação representa para a 27° edição que começa no dia 24 de novembro?
Lucia Caus – O nosso histórico nos ajudou a construir essa nova edição que, de certo modo, foi inédita para nós. Digitalizar um evento que cresceu e nasceu presencial foi um grande desafio. Ao longo de quase três décadas, o Festival de Cinema de Vitória sempre esteve comprometido com a democratização e o acesso à cultura. Sempre foi uma prioridade que todas as sessões do festival fossem gratuitas. Com essa edição online, e que se mantém gratuita, desejamos que as pessoas de todo o Brasil acessem esse recorte de talento e criatividade que apresentaremos da nova safra da produção do cinema brasileiro.
Revista Fórum – A cada ano há mais mostras com olhares plurais e questões afirmativas, além de estarem homenageando em 2020 o grande artista Gilberto Gil. Diante dos acontecimentos recentes, como o #vidasnegrasimportam no Brasil e no mundo, como você vê a importância da função social estabelecida por esse diálogo com o Festival?
Lucia Caus – O Festival de Cinema de Vitória busca a cada ano ampliar a diversidade de narrativas tanto nas mostras temáticas, quanto nas mostras tradicionais do evento. É extremamente importante pensar em equipes diversas e paritárias, tanto em gênero quanto em raça. Esse é um dos caminhos para ampliar a representatividade e a diversidade no evento como um todo. Esse ano a Comissão de Seleção do evento selecionou 23 filmes de realizadores negros e negras; 21 filmes dirigidos exclusivamente por mulheres, sendo 10 dirigidos por mulheres negras, 33 filmes com temática de diversidade sexual e dois filmes realizados por pessoas com deficiência, além de 22 filmes universitários, o que aponta a importância da Educação na formação de novos realizadores. Também vamos exibir 17 filmes da 1ª Mostra AudioTransVisual, projeto idealizado e coordenado por André da Costa Pinto, com a proposta de formação para realizadorxs transgêneros. Abrir essas janelas de exibição é um primeiro passo para estabelecer esse diálogo social tendo o audiovisual como uma ferramenta de representatividade. Homenagear o Gilberto Gil é coroar a proposta plural do festival. Ele é a síntese do melhor do Brasil. Uma explosão de talento, carisma, inteligência e representatividade. É um pensador do Brasil. É uma honra e um prazer reverenciá-lo e, desta forma, homenagear o nosso país.
Danny Barbosa – O Projeto AudioTransVisual surgiu da necessidade de inserção (real e efetiva) de pessoas transgêneros no mercado de trabalho, neste caso, o mercado audiovisual. Uma proposta, aparentemente simples, de formação técnica realizada de modo virtual (tipo EAD), que a cada encontro proporcionou a trinta alunas e alunos, inicialmente, de várias partes do Brasil, reconhecerem suas potencialidades na escrita, direção, produção e pós-produção de suas histórias e, definitivamente, reconhecerem-se e tornarem-se protagonistas de suas histórias. Vários apoiadores acreditaram e contribuíram, de alguma forma, com o AudioTransVisual, entre estes a Mídia Ninja, que exibiu em suas plataformas midiáticas os 17 trabalhos produzidos neste curso, assim como Lucia Caus, como representante master do Festival de Cinema de Vitória, que promove para 2020 a primeira Mostra AudioTransVisual dentro da programação desse ano. Não posso deixar de mencionar que esse projeto de valorização e ação afirmativa para profissionais transgêneros dentro do cinema só se tornou possível graças a André da Costa Pinto, que idealizou, acreditou e promoveu essa transformação na vida de tantas pessoas que não tinham chance de se mostrarem tão capazes.
Revista Fórum – Quais os maiores desafios de ter realizado esta edição online num ano de resistência ante pandemia mundial e desmantelamento de políticas públicas?
Lucia Caus – Foi um ano muito difícil para viabilizar o festival, mas o setor cultural sempre foi feito de luta. Tivemos que recriar um evento presencial que precisou se readaptar. Mesmo com todos os percalços, vamos exibir 101 filmes, formação, debates e homenagear dois artistas que são a síntese da resistência: Gilberto Gil e Claudino de Jesus. Além disso, contamos com o apoio e a generosidade de diversos parceiros para colocar de pé essa edição que, modéstia à parte, está maravilhosa.
Revista Fórum – Como festival de cinema, vocês dão bastante ênfase na formação de público e fomento de uma rede de produção de cultura. Mesmo em época de distanciamento social, vocês estão oferecendo desta vez online oficinas, masterclasses, etc. Se puder falar um pouco mais sobre isso...
Lucia Caus – O processo de formação sempre foi um dos pilares do FCV. Para nós, as oficinas são ações de conhecimento que alimentam a cadeia produtiva do audiovisual. Neste ano, em que enfrentamos uma série de dificuldades financeiras, elas quase ficaram suspensas. Mas através de uma parceria com a Natara Ney (editora e montadora), vamos conseguir realizar uma série de masterclass com profissionais de excelência que vão contribuir com talento e conhecimento na formação de uma série de novos profissionais. Aproveito para agradecer publicamente à Natara e à generosidade de todos que se envolveram e irão contribuir e enriquecer nosso evento e, especialmente, por acreditarem em nosso projeto.
Revista Fórum – Diante de uma base sólida de geração de empregos, circulação de economia criativa e visibilidade para vários polos representantes do Espírito Santo, o festival se construiu junto com parcerias e trocas culturais. Como você vê a resistência presente e as possibilidades para o futuro?
Lucia Caus – A cada nova edição do festival, por exemplo, a gente batalha por apoio, patrocínio, editais. São 27 anos de batalha, porque a gente acredita que a Cultura, ao lado da Educação, são peças transformadoras de uma sociedade. É na Cultura que a gente se reconhece enquanto nação.
Revista Fórum – Danny Barbosa, como você se sente em retornar ao Festival de Vitória, após presença como atriz no longa premiado como melhor filme, "O Seu Amor de Volta... Mesmo que Ele não queira", de Bertrand Lira, e agora como diretora de sua própria realização, numa mostra tão importante quanto esta?
Danny Barbosa – Conheci o Festival de Cinema de Vitória em 2019, ano em que estive como atriz, exibindo o longa-metragem "Seu Amor de Volta...mesmo que ele não queira", de Bertrand Lira. Tive a honra de ver a potência que é este festival para a cidade e para o estado do Espírito Santo. Vi crianças e adolescentes que, muitas vezes, não têm tanto acesso às salas de cinema, se emocionarem com as histórias contadas. Vi o cinema negro, lgbtqia+, o cinema capixaba terem um espaço importante para serem vistos. Vi o cinema itinerante chegar a localidades distantes e tudo isso me deu uma certeza: a arte é importante e essencial e que bom que eu tive oportunidade de viver isso, nesse lugar. Hoje retorno, só que dessa vez para além da atriz mostrarei características que nem acreditava que tivesse, que são as de roteirista, diretora e produtora do meu primeiro trabalho autoral. É mais uma honra para mim, que volto, como para minhas e meus colegas, que exibirão seus trabalhos. Obrigada, Lucia Caus, Galpão IBCA, Festival de Cinema de Vitória e obrigada a esta cidade incrível.