Os pronunciamentos do vice-presidente Mourão e do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, parecem querer salvaguardar alguma coisa no revoltante episódio de espancamento até a morte de um cliente negro por seguranças de uma unidade do supermercado Carrefour, em Porto Alegre. Para eles, tudo foi uma questão de “excesso” ou “despreparo”. Ação necessária, porém “excessiva”. Protegem um ardil semiótico que foi decisivo para o envenenamento do psiquismo na guerra híbrida brasileira: a “meganhacização” do cotidiano através de anos de shows diários das conduções coercitivas cultuando policiais corpulentos com armas reluzentes e toucas ninjas. A violência policialesca amparada pela meganhacização da Justiça como única forma de “passar o país a limpo”. Tática indireta da guerra híbrida para gerar caos sistêmico ao aglutinar duas feridas abertas de uma nação fundada no esquecimento: racismo e militarismo. Enquanto isso, as ações do Carrefour fecharam em alta no Ibovespa. Por quê?
Em 2014, uma dona de casa casada e com dois filhos foi linchada na cidade de Guarujá (SP), acontecimento provocado por um boato amplificado pela rede social Facebook a partir de um perfil de “vigilantes” chamado “Guarujá Alerta”. Ela foi confundida com uma sequestradora de crianças.
O então governador do Estado, Geraldo Alckmin (PSDB), deu uma declaração ambígua ao sugerir que o ato bárbaro era injustificado porque “tudo não passou de boato...”. Então, se as informações fossem verdadeiras, o linchamento seria justificável?
O pronunciamento do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), sobre o assassinato de João Alberto Freitas por dois seguranças em uma unidade do supermercado Carrefour, em Porto Alegre, também foi semioticamente ambíguo: para ele, é necessário apurar a “violência excessiva” – os seguranças podem dar porrada, sim! Mas não matar... Lembrando a “folclórica” declaração de outro governador, Paulo Maluf: “estupra, mas não mata!”.
Há também a fala do vice-presidente Hamilton Mourão: para ele, os seguranças não são racistas, mas “despreparados”. Todo o problema se resumiria na questão de “excessos” e não sobre a natureza do problema.
E qual a natureza de toda a questão que esses pronunciamentos tentam salvaguardar? A meganhacização do cotidiano brasileiro, categoria sistematicamente cultivada pela guerra híbrida brasileira por bombas semióticas diárias detonadas pela grande mídia.
A tragédia de 2014 em Guarujá era então a vigésima morte por linchamentos naquele ano que marcava o recrudescimento da onda de protestos promovido pela guerra híbrida e o início do grande sucesso de audiência: a Operação Lava Jato. Era a meganhização da Justiça como suposta e única forma de combater a corrupção. Diariamente na TV, o histérico bordão “policiais federais nas ruas!” era repetido por apresentadores de telejornais, enquanto homens corpulentos com armamento pesado reluzindo ao sol, toucas ninja e trajes militares negros eram focalizados pelas câmeras em linguagem audiovisual sensacionalista.
Guerra Híbrida e Caos Sistêmico
O jornalista e pesquisador russo Andrew Korybko, no seu texto “Hybrid Wars: The Indirect Adaptive Approach to Regime Change”, cria o conceito de “caos sistêmico”, ou “caos estruturado”, como estratégia semiótica de atribuir um significante (um sentido) a elementos psiquicamente difusos em uma sociedade, como o ressentimento, medo, insegurança, insatisfação etc.
No caso brasileiro, há dois traumas fundadores da nação e que jamais foram resolvidos: a escravidão e o militarismo. Um país cuja República foi fundada através de um golpe militar e o escravatura abolida de cima para baixo, por uma sanção imperial – enquanto o povo assistia a tudo “bestializado” (leia CARVALHO, José Murilo de, Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi, Companhia das Letras, 1987).
Guerra Híbrida trata-se de criar conflitos por procuração em países periféricos para desestabilizar sociedades e governos através de táticas indiretas. Uma das principais delas, é explorar feridas abertas no psiquismo social, ampliando-as através da criação de significantes políticos (como o “combate à corrupção”, por exemplo) para induzir o caos sistêmico. Isso gera polarização política, protestos e conflitos. Que em última instância vai justificar o Estado Mínimo reduzido à sua função policial e repressiva (sobre isso, leia o trepidante livro deste editor do Cinegnose “Bombas Semióticas na Guerra Híbrida Brasileira - 2013 a 2016: Por que Aquilo Deu Nisso?”) – clique aqui.
Desde a escalada de linchamentos e embrutecimento do cotidiano brasileiro, a partir de 2014, é visível o crescimento da raiva e ódio como espécies de equivalentes gerais com os quais se lida com qualquer questão, do cotidiano à política (do Paulo “Posto Ipiranga” Guedes, vertendo radicalismo anarcocapitalista e brutalidade no trato com as questões sociais, à violência cotidiana sistemática de policiais e seguranças privados).
A construção semiótica da meganhacização
A meganhacização tornou-se um denominador comum para tudo no Brasil: Justiça, Economia, Polícia – o empoderamento da brutalidade como única solução possível para “passar o país a limpo”.
Ela, a meganhacização, como tática indireta para gerar caos sistêmico aglutina as duas feridas abertas de uma nação fundada no esquecimento, no racismo e militarismo.
E foi um meganhização semioticamente construída pelo jornalismo corporativo de guerra através de sequências de imagens enquadrando armas lubrificadas, reluzentes, coldres, metralhadoras empunhadas ao nível da virilha, prontas para entrar em ação em telejornais, minisséries nacionais, telenovelas e na enésima operação da Lava Jato, sempre comemorada nos telejornais.
Armas e meganhas (soldados da polícia) se transformaram em diagnóstico de todos os problemas nacionais. Indicadores sociais como educação, saúde e emprego estão caindo? Então a culpa só pode ser da corrupção e meganhas com armas brilhantes e seus óculos “thug life” são a solução (caçar e prender corruptos e expô-los às câmeras como fossem caçadores de cabeças a prêmio).
A grande mídia, que agora denuncia “racismo estrutural”, que aproxima a morte de João Alberto Freitas em Porto Alegre à morte de George Floyd nos EUA e que exalta “vidas negras importam”, alimentou diariamente o imaginário da meganhização, transformando em show as conduções coercitivas com policiais fortemente armados – dentro da estratégia semiótica da guerra híbrida, criou um equivalente geral que eletrizou racistas, supremacistas, militaristas e toda a lama psíquica de uma sociedade que jamais fez um acerto de contas com sua própria história.
Não é para menos que a sociedade brasileira elegeu e colocou no Estado um movimento político baseado na nostalgia da Ditadura Militar e no negacionismo – seja da emergência sanitária de uma pandemia, seja da existência do racismo.
A meganhacização (presente no pronunciamento do governador do Rio Grande do Sul ou em cada opinião que busca os antecedentes criminais da vítima para justificar o espancamento) é o açodamento do ressentimento até o momento em que este se transforma em gerador de valores (Nietzsche). Os valores de uma vida embrutecida, tais como golpes, intervenção policialesca, sanha persecutória e linchamentos, como ideias virtuosas ou, no mínimo, males necessários.
Concepção fascista de vida que dá importância exagerada a relações assimétricas entre forte/fraco, líder/liderado, poder/submissão.
O que faz a guerra híbrida é instrumentalizar os pontos fracos do psiquismo social (no caso brasileiro, racismo e militarização) para dar a eles significantes ou novos sentidos com o objetivo de criar desestabilização e desagregação – caos sistêmico.