Golpe colorido na Bielorrússia (I): a planificação social de Lukashenko

O governo de uma nação é uma tarefa por demais complexa e ampla, que não pode ser medida com a régua pequena que serve a um ou outro episódio – ou fala fora de propósito, a que todo indivíduo está sujeito

Foto: Paulo Henrique Tavares
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Nestes primeiros vinte anos do século, presenciamos um surpreendente avanço tecnológico em setores como informática, telecomunicações, indústria militar e também na tecnologia dos golpes de estado. Não só os aparelhos telefônicos e computadores são hoje mais potentes e discretos, mas também os golpes políticos têm se caracterizado por serem mais sutis, bem  ornados com discursos psicologicamente impactantes e costumeiramente precedidos por ampla campanha midiática.

Independentemente de o mandatário ter sido eleito em votações bem observadas pela comunidade internacional, a propaganda dos ‘contras’ passa pela repetição do discurso de que se trata de um “usurpador”, alguém que de “presidente eleito”, tornou-se um “ditador”, um “regime que viola os direitos humanos”, e por aí segue.

Bielorrússia: o novo alvo do avanço neoliberal rumo ao Oriente

O grande alvo agora é a Bielorrússia, país estratégico para os interesses da OTAN, para cercar a Rússia, grande potência rival. Esta nação, uma ex-república soviética, é governada há duas décadas e meia por Alexander Lukashenko, um líder que os “democráticos” EUA e a UE afirmam, ser “autoritário”. Porém, surge a dúvida para quem quer se informar melhor, para além da pauta orquestrada pela mídia corporativa: o presidente eleito bielorrusso é mais autoritário do que qual governo sob o domínio do capital e sua meia dúzia de megamonopólios? O de um “eleito” como Trump? Ou o de um Bolsonaro?

Observemos de perto o caso do “autoritarismo” bielorrusso, liderado por um presidente que mantém, há mais de 20 anos, sólidas políticas sociais, como na saúde e educação pública. Uma nação que manteve em certa medida a racionalidade de uma economia planificada, como nos tempos soviéticos, e que assim se esquivou da grave crise que acometeu a Rússia no período da desintegração da URSS, quando empresas estatais foram privatizadas a preços de atacado. Um país que hoje detém um dos melhores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo, e não apenas isso:  um dos menores coeficientes Gini, o indicador de desigualdade.

Estes dados, para um país semiperiférico, com um território mediterrâneo de dimensão média e sem muitos recursos, decerto não foram motivados pelos “ajustes estruturais” ou pelo “enxugamento dos gastos” (em políticas sociais), políticas trágicas impostas pelo FMI, sobretudo durante a década de 1990, quando a União Soviética foi derrotada na Guerra Fria e os Estados Unidos passaram a controlar sozinhos o planeta.

Edifício imponente em Gomel (Foto: Paulo Henrique Tavares)

Se Lukashenko, a partir da dissolução da URSS, conseguiu manter o nível de vida bielorrusso nestes patamares, isto se deve, por um lado, a uma planejada opção política de manter as virtudes do legado “social-desenvolvimentista” de tipo soviético. Por outro, advém da oportunidade econômica que o líder percebeu na parceria geoestratégica e cultural com sua grande irmã eslava, a Rússia.

Tal acusação de autoritarismo, por parte das potências invasivas da OTAN, como se busca expor nesta reportagem, passa por um exercício retórico, visando ganhos sobretudo geopolíticos. Ou seja, a aliança ocidental (Estados Unidos e União Europeia) segue pressionando seus opositores, buscando avançar sobre a fronteira eurasiática, com vistas a ameaçar diretamente o território da Rússia e os interesses da China – estas duas superpotências que são hoje os mais fortes concorrentes econômicos e militares do Ocidente. E a Bielorrússia é um dos principais caminhos do petróleo e gás russo, além de histórica passagem da Rota da Seda, em que os chineses estão investindo forte.

Golpes coloridos: a OTAN mais perto da fronteira russa

Não é o intuito aqui, entretanto, defender o governo Lukashenko – em si – da acusação de “autoritarismo”, mas sim buscar compreender o todo da questão bielorrussa e as possibilidades de solução.

Vejamos então mais de perto quem são os dois lados em conflito, nesta luta que se iniciou, ao que parece, a partir de uma movimentação interna (baseada em pautas de uma parcela da população, mais abastada e ocidentalizada), mas que vem sendo agora amplificada a partir de pressões econômicas e diplomáticas, além de contar com a injeção de enormes recursos materiais e tecnológicos bancados pelo Ocidente.

Como se verá, diversas evidências caracterizam o caso bielorrusso como sendo mais um capítulo dos golpes de novo tipo, “brandos”, de acordo com a tática já bem conhecida nesse novo século: a chamada “revolução primaveril”, ou “colorida”, um eufemismo que a grande mídia consagrou (com os casos da Ucrânia e Geórgia) para designar processos golpistas menos agressivos e de iniciativa “interna”.

Tratam-se de golpes que chegam ao conhecimento público sempre floridos pela imprensa dominante com adornos “populares” e “democráticos” – ainda que o termo “popular” se refira aqui maiormente à elite pró-ocidental, inflamada e bem formada no exterior.

Embora menos violentos, tais processos têm sido sempre manchados, em sua evolução, com a miséria da “democracia neoliberal”, o consequente êxodo populacional migratório e o enfraquecimento da nação, como nos casos sírio, venezuelano, ucraniano, etc.

Lukashenko: ascensão e desgaste

Chamado pelos EUA e UE de “o último ditador da Europa”, Lukashenko foi eleito pela primeira vez em 1994, logo após a derrota soviética. Sua popularidade, desde então, é inegável, apesar do desgaste pelo longo tempo no poder e pelos efeitos da crise econômica mundial, que se arrasta desde 2008.

Logo de início, o governante teve a inteligência de barrar e até reverter privatizações de estatais (prática que quebrou a Rússia, nos anos 1990), vendeu apenas poucas empresas, de menor valor estratégico e deficitárias, investiu em políticas sociais e aumentou significativamente o salário-mínimo. Sua grande base política se conformaria em torno dos trabalhadores das estatais. Ao longo de seus governos, construiu um modelo econômico fundado no controle estatal de empresas estratégicas, na regulação estatal do mercado e no alto nível de investimento social.

De acordo com matéria recente da conservadora BBC inglesa [1], o estado bielorrusso controla hoje mais da metade do PIB, com taxas de pobreza e de desemprego muito baixas, inclusive para o padrão europeu (embora estes números tenham naturalmente declinado com a série de crises dos últimos anos – econômica e sanitária).

Apesar do alto IDH e da baixa desigualdade social, pesa sobre Lukashenko sua longa estada no poder: os jovens de 25 anos não conheceram outro presidente e, o que é mais impactante, não viveram a situação de decadência social dos anos 1990. Deste modo, os excelentes índices sociais vêm sendo questionados por discursos que acusam os salários praticados nesta nação planificada de serem “baixos”, quando comparados aos das potências vizinhas da UE. Argumentos, porém, que não levam em conta o bom poder de compra destes “baixos” salários, dado o baixíssimo custo de vida (saúde e educação pública, impostos, subsídios, entre outros).   

Na mencionada reportagem da BBC (“Cómo funciona la economía estatizada de Bielorrusia), afirma-se ainda que a “última economia planificada da Europa” segue um “caminho do meio” entre uma direção estatal da economia e a abertura de um “mercado livre”, uma espécie de “socialismo de mercado” em que setores como a indústria e a agricultura são majoritariamente controladas pelo estado.

Vale notar porém que essa estatal britânica (de orientação neoliberal), embora crítica de Lukashenko, é obrigada a admitir que o país afrontou positivamente a crise do período imediatamente pós-soviético, introduzindo controles administrativos sobre os preços e o câmbio, introduzindo subsídios e um sistema de assistência social ampliado, que fizeram do país “um estável estado de bem-estar social”, no qual “a saúde e a educação são públicas e gratuitas”, o “desemprego é baixo”, e o percentual de pessoas abaixo do nível de pobreza decresceu, entre 2000 e 2018, “de 41,9% para 5,6%” (conforme dados do Banco Mundial) – “uma das taxas mais baixas da Europa”.

O oscilante Lukashenko

Se Lukashenko pode e deve ser criticado por sua postura despeitada diante da gravidade da crise sanitária da Covid-19, chegando a sugerir que se tomasse “vodca” e fizesse “sauna” como proteção contra o novo coronavírus (notícia copiosamente utilizada pela mídia ocidental na tentativa de derrubá-lo do poder), este seu sério equívoco, que não é certamente o único, não deveria bastar para que certos críticos progressistas e até socialistas passassem a comprar a versão da OTAN, denunciando seu governo como uma “ditadura insana”, como se tem visto.

O governo de uma nação é uma tarefa por demais complexa e ampla, que não pode ser medida com a régua pequena que serve a um ou outro episódio – ou fala fora de propósito, a que todo indivíduo está sujeito.

Cabe, antes, buscar enxergar o todo da questão, a “totalidade concreta” – como diz Marx –, que no caso consiste em entender os objetivos gerais das ações políticas tomadas pelo governo, os resultados obtidos no período e, inclusive, os possíveis rumos do país (caso a oposição assessorada pelo Ocidente consiga derrubar o governo).

No fim dos anos 2000, a Europa se vê mergulhada com gravidade na crise econômica mundial (que começara em 2008).  Neste contexto, Lukashenko tentou obter ganhos em seus imensos negócios com a Rússia (petróleo, gás, eletricidade), acenando à UE por uma aproximação, e abrindo a economia para investimentos ocidentais, segundo tática de não-alinhamento automático, que foi batizada por analistas, como “pêndulo de Lukashenko” [2].

Durante algum tempo, isso permitiu a Minsk barganhar por melhores condições com Moscou. Dentre os principais flertes com as potências ocidentais, Lukashenko decidiu privatizar algumas empresas menores – como duas operadoras de telefonia celular –, ação que levaria até o FMI a aplaudir o “último ditador”, reforçando seu poder. De acordo com reportagem de 2009 da revista alemã Der Spiegel [3], o presidente “reagiu bem à crise” e “repentinamente parece um homem diferente”, que “pede por liberalização econômica”, buscando tornar seu país “atraente para os investidores”, destacando-se especialmente no ramo de “tecnologia da informação” – como o “Vale do Silício bielorrusso”. Por outro lado, a matéria destaca a desconfiança de Lukashenko quanto a relações com oligarcas russos e sua rejeição ao investimento de um banco estatal do país vizinho.

Mercado em Gomel (Foto: Paulo Henrique Tavares)

Porém “na verdade” – pontua a revista corporativa alemã – a meta do líder eslavo não é de fato a “reforma” (referência à meta neoliberal de se abrir o mercado nacional ao capital internacional e minimizar as ações do estado). Seu objetivo é sim, mediante tais políticas emergenciais, obter um maior “controle sobre as empresas mais importantes do país” (que continuaram estatais). Além disso, as empresas oferecidas à privatização não foram consideradas “atraentes” (ao apetite monetário dos lobos do Ocidente) – de maneira que, na Bielorrússia, o governo controla ainda “três quartos da economia”, e os investidores estrangeiros “continuam sendo uma exceção à regra”.

Na véspera das eleições do último agosto, as oscilações de Lukashenko voltariam a querer demonstrar a seu povo e ao mundo certa autonomia frente à forte Rússia de Putin, país de que a economia bielorrussa é bastante dependente.

Já desde janeiro a disputa entre Minsk e Moscou estava abalada, pois Putin decidira interromper o acordo pelo qual a Rússia fornecia petróleo barato à Bielorrússia [4], isto porque o vizinho estava revendendo o ouro negro russo à Ucrânia, beneficiando portanto este país hoje dominado pelo Ocidente e polo de práticas antirrussas.

Em julho, o estremecimento entre os parceiros eslavos culmina na detenção de 33 cidadãos russos [5], ligados a uma empresa militar privada, suspeitos de tentativa de organizar distúrbios no país, em temporada pré-eleitoral, e acusados de espionagem.

Esta desavença, que enfraqueceu a aliança russo-bielorrussa em um momento crucial do país, foi a boa oportunidade que a oposição neoliberal aguardava para atacar. Para tanto, obteve o apoio do Ocidente e se usou de influenciadores digitais e discursos apelativos “contra a corrupção e o autoritarismo” e até mesmo “pela família”.

O que se vê, no atual cenário bielorrusso, é uma nação conturbada pela crise mundial e por manifestações de rua que, se não continuam assim tão massivas (quanto as amplificam a lupa dos meios ocidentais), têm feito chacoalhar o presidente. Reeleito agora para o sexto mandato, Lukashenko está desgastado pela visibilidade do poder, mas tão somente essa longevidade não seria motivo para que o tachassem de “ditador”, já que até a mandatária-mor da tão “democrática” UE, Angela Merkel nos dá o exemplo de seu quarto mandato (na Alemanha), isto sem contar o caso das monarquias eternas (amigas da OTAN e, portanto, “democráticas”), como a Arábia Saudita.

Observemos a seguir quem vem capitaneando a oposição: Svetlana Tsikhanouskaia, candidata derrotada por Lukashenko, sem nenhuma passagem pela política e sem um programa de governo consistente, para além de acenos a Merkel, Macron (e até Trump), em nome da “modernização” do país, e bravatas contra o “autoritarismo”, além da tal “corrupção” e “pelas crianças”, algo próximo ao que se viu recentemente ser propagandeado no Brasil por um certo juiz formado nos EUA, ex-ministro atualmente desempregado e que cuja consequência foi a chegada de um fascista de segunda linha ao poder.

[Continua]

Referências

[1] https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-53986659

[2] https://diplomatique.org.br/bielorrussia-esgotamento-economico-e-crise-politica

[3] https://www.spiegel.de/international/world/the-minsk-tiger-lukashenko-s-high-tech-ambitions-for-belarus-a-668405.html

[4] https://www.liberation.fr/planete/2020/07/17/petrole-la-bielorussie-s-ouvre-une-porte-a-l-ouest_1794440

[5] https://actualidad.rt.com/actualidad/363237-32-ciudadanos-rusos-detenidos-regresar