No ano de 2019 ecoou no mundo o grito de “basta” das mulheres chilenas contra a violência sexual sob o título de “Um violador en tu camino” (um estuprador no seu caminho), uma canção que se tornou um hino de resistência contra o patriarcado. A performance foi criada pelo coletivo feminista Las Tesis e reproduzida por mulheres dos mais diversos países do globo. O movimento feminista no Chile atuou com forte protagonismo nas revoltas sociais que marcaram o ano de 2019 no país e não à toa o Las Tesis foi indicado como um dos movimentos mais influentes de 2020 pela Revista Times.
A recente conquista do movimento feminista chileno na garantia da paridade de gênero nas candidaturas à nova Constituinte, resultante do protagonismo das mulheres chilenas na revolta popular de 2019, coloca luz sobre o importante papel que as feministas têm jogado nas transformações políticas e sociais não só neste país, mas em toda a América Latina.
A cada dia, nove mulheres latino-americanas são assassinadas, vítimas de feminicídio. Segundo a ONU Mulheres, a região é o local mais perigoso para uma mulher, fora de uma zona de guerra. E, ainda que dezoito países latino-americanos tenham criado legislação própria para estes crimes, definindo-os como feminicídio, a forte cultura do machismo e da impunidade nesta região faz com que ainda não haja grandes avanços neste aspecto. Para além disso, a violência generalizada de gênero, a cultura do estupro, as desigualdades salariais, a pobreza, as mortes por aborto clandestino e a impunidade judicial tornam a América Latina uma região extremamente difícil e perigosa para as mulheres.
O contexto em que se encontram as lutas feministas nestes países é bastante desafiador, pois vem acompanhado de uma história colonialista sangrenta, promotora das mais diversas desigualdades econômicas, políticas e sociais que afetam ainda mais as mulheres e, principalmente, negras e indígenas. Este cenário repleto de históricas desigualdades traz para as feministas latino-americanas o desafio de denunciar, pressionar e expor não só o machismo, mas também o racismo e a injustiças sociais, marcas do colonialismo. Neste sentido, quando se trata de América latina, cada vez mais surge a defesa dos feminismos decoloniais, por pensarem a luta a partir de mais vertentes além do gênero, como raça e classe.
Movimentos como o Ni uma Menos (Nem uma a Menos) na Argentina, que nasce da luta pela legalização do aborto e contra as violências de gênero e cultura do estupro, também se posicionaram fortemente contrários às politicas neoliberais de precarização da vida do Governo Mauricio Macri, derrotado nas urnas nas ultimas eleições. Já no Brasil, foi o movimento de mulheres que levou milhões de pessoas às ruas contra o então candidato à presidência Jair Bolsonaro nas eleições de 2018. Esses exemplos mostram que “o feminismo, mais que um movimento social, é a sociedade em movimento” como afirmou a feminista argentina Maristella Svampa (2019).
Com isso, falar de feminismo na América latina é falar também da luta pela democracia e por uma nova ordem global que substitua o neoliberalismo por um sistema mais igualitário que não feminize e racialize a pobreza. É reverenciar a amefricanidade de Lélia Gonzales e a defesa de um feminismo afro-latino-americano em contrapartida ao modelo branco eurocêntrico.
Falar de feminismo na América Latina é também falar em pluralidades que somam e a defesa da coletividade no lugar da individualidade, mãos entrelaçadas que não se soltam. É o afeto que acolhe, o canto que ecoa, os pés que giram em danças, é libertar-se e libertar. Falar em feminismo na América latina é falar de um futuro que não há de ser outro senão feminista.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum