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OPINIÃO
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Bruno Fernandes de Souza, o “goleiro Bruno”, é aquele tipo de personagem incontornável pra quem queira entender o Brasil dos nossos tempos. Bruno é feminicida, julgado e condenado pelo brutal assassinato de Eliza Samudio, mãe de seu filho. Foi também durante algum tempo ídolo esportivo. Para alguns, infelizmente, ainda é, o que diz algo sobre o colapso civilizatório em que estamos atolados.
O que mais me chama atenção no assunto é como o “caso Bruno” traz à luz as clivagens identitárias que atravessam a sociedade brasileira contemporânea e põe à prova, à direita e à esquerda, os limites da coerência ideológica.
Desde o final do século XVIII que a política ocidental é pautada nas disputas entre esquerda e direita. De lá pra cá, a esquerda se transformou, a direita se transformou. Mudaram também os critérios que distinguem uma e outra.
Há quem fale em “morte das ideologias”, que não mais faz sentido pensar a política na lógica direita X esquerda. Discordo. Faz todo sentido. Não é mais o sentido do século XVIII, tampouco do XIX. Nem do XX. Mas ainda faz todo sentido.
No Brasil, por exemplo, há vários critérios práticos que sustentam a validade da divisão do corpo político entre direita e esquerda.
Um desses critérios diz respeito ao aparato repressor e punitivo do Estado.
A direita tende a ser punitivista, defende o endurecimento do poder do Estado em reprimir e punir sujeitos considerados desviantes. Traficantes varejistas, políticos corruptos. Todos devem ser severamente punidos pelo Estado, se possível executados, mortos, assassinados.
A esquerda tende a ser libertária e defende o afrouxamento da repressão e da punição, falando em ressocialização dos criminosos e em “abolicionismo penal”, termo consagrado nas hostes esquerdistas. O traficante varejista, por exemplo, mesmo com ficha criminal corrida, repleta de latrocínios e de toda sorte de violência praticada contra comunidades pobres, deveria ter o direito à ressocialização, ao trabalho.
É aqui que o “caso Bruno” embaralha tudo.
O esquerdista médio diz que Bruno, o feminicida, não tem direito à liberdade condicional, mesmo que tenha atendido todos os critérios legais que regulam a matéria. Bruno não teria o direito ao trabalho, ao exercício de sua profissão, não seria digno de qualquer ressocialização. Se tivesse a chance, parte da esquerda levaria Bruno à praça pública, lhe estriparia, espalhando suas vísceras pelos quatro cantos da cidade. Para Bruno, não existe a possibilidade de abolicionismo penal.
O direitista médio encontra Bruno no shopping e pede uma foto. Suaviza a barbaridade do feminicídio questionando a honra da vítima. Nessa narrativa, Bruno é o homem rico coagido pela mulher interesseira, atriz de filme pornô, puta. O assassinato, então, se torna uma reação passional, desesperada, quase um ato de legítima defesa, crime de menor potencial ofensivo. Nesse caso específico, não é evocada a máxima do “bandido bom é bandido morto”.
É óbvio que as incoerências não têm a mesma dimensão ética e não seria honesto sugerir total simetria entre os dois grupos. Mas há, sim, um ponto em que a direita e esquerda, tal como se apresentam hoje no Brasil, se assemelham e que, na minha percepção, explica seus posicionamentos aparentemente contraditórios no “caso Bruno”: ambos os grupos têm como prioridade política a afirmação pública de suas identidades. São essas identidades que afloram sempre que circula pela imprensa a notícia de que Bruno foi libertado, e de que voltará a jogar futebol.
A esquerda, comprometida com a defesa dos direitos das minorias, não admite a possibilidade de ressocialização a um feminicida, ou alguém que tenha matado motivado por racismo ou homofobia. A prioridade política da esquerda, hoje, é a afirmação e a defesa das particularidades identitárias desses sujeitos. A ideia universal de “classe trabalhadora”, que durante muito tempo inspirou a atuação política das esquerdas internacionais, não tem mais potencial mobilizador. O trabalho, enquanto atividade social, perdeu a capacidade de fomentar vínculos identitários. As identidades atendem a outros critérios, relativos às condições de gênero e raça.
Já a direita está comprometida com a defesa de valores considerados naturais e universais, como a dimensão biológica da sexualidade e a integralidade de um certo modelo nuclear e heteronormativo de família, caracterizado, sobretudo, pela construção da imagem da “mulher de bem”, disciplinada sexualmente. Por isso, a mulher considerada “puta” se torna “matável”, “estuprável”.
Peço perdão pelo enfado da repetição, mas todo cuidado é pouco em assunto tão delicado: não há simetria moral aqui. Esquerda e direita não se equivalem moralmente. Repito, correndo o risco de sacrificar o estilo, mas com algum ceticismo de que o esforço valha de algo. A desonestidade intelectual se manifesta, também, à esquerda e à direita.
O que estou dizendo é que o “caso Bruno” desnuda o compartilhamento de um mesmo afeto, de uma mesma necessidade de afirmação identitária. Isso explica, em parte, outras semelhanças no comportamento político de direitista e esquerdista médios: a agressividade, o gosto pela adjetivação e a pulsão de colocar o pensamento destoante no campo oposto.
Diante da insanidade, é sempre bom preservar o respeito pela legislação. O pouco apego pelas instituições estabelecidas é outra característica compartilhada à direita e à esquerda.
Não há nada que, legalmente, impeça Bruno de trabalhar, como garçom, pedreiro ou mesmo como jogador de futebol. Pessoalmente, acho que o abolicionismo penal não deveria se aplicar a autores de crimes de sangue, o que envolve tanto o traficante varejista cheio de latrocínio nas costas como Bruno. Mas não sou legislador, não crio leis.
Mas há outros impedimentos para além da legalidade. Existe o constrangimento moral. O Fluminense de Feira de Santana, clube da série A do futebol baiano que havia contratado Bruno, desistiu, diante da pressão da opinião pública. Há várias formas de condenação perpétua. Essa batalha, ao que parece, a esquerda venceu.
O “caso Bruno” é a prova cabal de que as ideologias estão vivas, vivíssimas.