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OPINIÃO
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Neste Natal, por alguma daquelas razões obscuras do meu coração ateu, lembrei demais do meu caro amigo Belo. Ele chegou, na época, de contrabando, irmão mais velho de um outro amigo, e acabou se perpetuando.
Enquanto a gente andava lá pela casa dos 15, 16 anos, em meados da década de 70, o Belo, com seus vinte e poucos, já tinha rodado o brasil. Extrovertido, simpático, com barba enorme, cabelo pela cintura, calças jeans e alguns farrapos, era o perfeito hippie. De alguma maneira que nunca entendi, por onde ia – e foram vários lugares – carregava sempre com ele um baú de LPs.
Um sujeito que levava a vida que todo adolescente adoraria ter e, como se não bastasse, carregava consigo alguns dos melhores discos do mundo. Rapidamente, ele acabou nosso herói, e tudo o que nos mostrava virava referência.
Foi de dentro do seu baú, diretamente para a minha vida que entrou, por exemplo, o grupo vocal canadense-americano Crosby, Stills, Nash & Young com todos os seus desdobramentos. Passávamos horas ouvindo aquilo com ele ensinando o tanto que Neil Young era mais roqueiro, Graham Nash mais doce e por aí afora.
Lembro bem do dia em que nos mostrou Frank Zappa, um guitarrista e tanto que produzia sons que nunca havia ouvido na vida. “Po-Jama People”. Eram vários discos que a gente ouvia durante horas seguidas, decorava os encartes, um após outro.
Belo tinha uma predileção indisfarçável por sons mais pesados. Dizia sempre que o que havia sobrado de melhor dos Beatles eram os álbuns solo do John Lennon. Foi a primeira pessoa a me chamar a atenção para o lindo “Plastic Ono Band”, que passei o resto da vida a ouvir especialistas repetirem a sua frase: “O melhor álbum de rock da década”.
Belo sabia das coisas. A maioria dos artistas que me mostrou naquela época em que revistas especializadas eram importadas e a internet era coisa de astronautas, ele conseguia por conta própria e, o que é melhor, deduzia sozinho, com seu raciocínio hábil e rápido.
Logo após o Zappa, por exemplo, suas aulas engancharam no Capitain Beefheart e a sua incomparável Magic Band. Sons estranhos, de vanguarda, que hoje vejo citados como importantíssimos em compêndios e enciclopédias e me vem logo o sorriso de altivez: “me ensinaram isso faz tempo”.
De dentro daquele baú saíram também álbuns de rock progressivo, a última onda da época, com os primeiros discos do Pink Floyd, Genesis, Yes, Gentle Giant e por aí afora. Ele tinha também todos os discos do Jimmi Hendrix, raridade de uma época em que a indústria brasileira só lançava coletâneas e compilações.
Foi com ele também que conheci muitos outros álbuns de música brasileira que ninguém ouvia falar por essas bandas na época, como o Som Imaginário, os primeiros discos do Milton Nascimento, a banda paulistana Made in Brazil e, pouco depois, a tão propalada vanguarda paulistana, com Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção e afins.
Tudo parecia chegar às suas mãos antes de todos. De carona naquele sujeito privilegiado que virou amigo, tenho a impressão que muito do que aprendi sobre música, a ponto de tirar o tempo do caro leitor até aqui, foi com ele e aquele seu baú.
E é por isso que, até hoje, mais de 40 anos depois, cada vez que ouço algo novo, ou até mesmo aqueles velhos álbuns, comento em silêncio com meu amigo Belo. E ele, lá de longe, mesmo sem saber, sempre me responde com algum comentário.