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OPINIÃO
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“Os livros hoje em dia, como regra, é um amontoado. Muita coisa escrita, tem que suavizar aquilo”, disse o presidente, em entrevista concedida na saída do Palácio da Alvorada. “ (Veja, 3 de janeiro)
A epígrafe, publicada e repercutida em vários veículos da mídia grande, é da fala do atual ocupante do cargo de Presidente da República do Brasil.
Brasil, um país cujas raízes escravocratas e colonialistas legaram ao início do alvorecer republicano uma taxa de 75% de analfabetismo.
E que hoje, ainda, amarga os graves índices de quase 7% de analfabetismo absoluto e 29% de analfabetismo funcional.
Há uma tarefa imensa a ser cumprida e ela depende de esforço, persistência e investimento da nação brasileira.
Mas, fundamentalmente, depende de vontade política e firme propósito.
Contudo, quando o ocupante do cargo de presidente acha que os livros têm muita coisa escrita, ele revela não só um profundo desprezo com a cultura letrada, mas especial e, fundamentalmente, um escárnio para com todos aqueles que desejariam muito poder decifrar, compreender e transitar naquele universo do “amontoado de coisa escrita”.
Quem conviveu com gente analfabeta pode entender o quão cruel é a fala do atual presidente; quem já alfabetizou e viu o brilho nos olhos da primeira leitura pode divisar o quanto é obtusa esta declaração do presidente de ocasião.
Tal fala afrontosa me choca não somente como professora e pesquisadora de políticas educacionais mas, cala fundo na memória de um dos maiores traumas inscritos na minha história familiar.
Minha avó foi impedida pelos pais de ir à escola e castigada quando tentou driblar a proibição. Possivelmente, por conta disto, nem minha mãe, nem eu e minha irmã –todas pedagogas- conseguimos alfabetizá-la.
Possivelmente, também, pela força desta dor nos tornamos militantes e profissionais da educação.
Entre tantas histórias gravadas da limitação que o analfabetismo trazia à minha avó, não obstante sua galhardia e criatividade para superar os obstáculos, uma delas é a mais forte no painel das minhas lembranças.
Estava eu no primeiro ano da graduação de Pedagogia e havia feito o primeiro trabalho de mais fôlego teórico, que até hoje guardo. Recebera um 10 e mostrava a todos os familiares com orgulho.
Ao longe, minha avó ucraniana, que imigrara para este país na infância, observava meu entusiasmo com o texto nas mãos.
Eis que ela pede para vê-lo. Eu o mostro, meio constrangida, pois sabia que ela não poderia ler ou entender.
Ela toma o trabalho encadernado nas mãos, folheia e comenta:
“Que bonito! É bem limpo”.
Era o que ela podia dizer do “amontoado de letras” que a neta escrevera.
Ainda assim, ela queria compartilhar da admiração e da comemoração e o fez do lado de fora de um universo que ela não habitava: o da cultura letrada.
Como ela, muitas senhoras e senhores, ainda hoje, são alijados deste mundo.
Muitos deles vão buscar as classes de educação de jovens adultos e entre tantos estão os que têm como motivação primeira a leitura da bíblia, aquele amontoado de coisa escrita. Outros, chegam lá pelas mãos dos filhos e netos.
Para quem é analfabeto/a, o mundo das muitas coisas escritas é o universo a ser explorado, desvendado e conquistado.
E por isto mesmo, é tão doloroso e repugnante ver que alguém que ocupa uma condição que poderia prover meios hábeis para permitir que este universo seja acessível a todos, escarneça e despreze a importância da cultura letrada e dos livros.