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OPINIÃO
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Este texto se realiza pela questão incômoda a respeito de o presidente Jair Messias ter o direito e a soberania de ir à ONU neste mês discursar e tratar da Amazônia depois do que fez, do que falou e das omissões que consumou no Brasil e que levaram, por atos criminosos, a desmatamentos e queimadas recordes da floresta. A questão precisa ser respondida no correr do texto.
Antes mostrar que uma releitura do trio de valores direito, soberania e justiça nas matrizes históricas em que mais ele foi tematizado, isto é, na cultura judaico-cristã, revela problemas contemporâneos e trilhas novas para uma necessária ação dialética, que exige, portanto, o diálogo social.
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Os poderes sumério, egípcio e romano, para exemplificar, são dialetizados na história hebraica, judaica e cristã, com grandes saltos de qualidade. Isso porque se dá a passagem de uma economia fundamentada nas conquistas de sangue e na comutação de matrizes culturais realizadas a ferro e fogo para uma economia de posses comunitárias e de atribuição de valores culturais à vida cotidiana de pessoas concretas, crianças, jovens, adultos e idosos. As narrativas são abundantes, especialmente nos textos de sabedoria, nos profetas e nos evangelhos, notadamente quando os valores convergem para a prática da justiça. Nem o direito, nem a soberania se estabelecem sem a visibilidade da justiça, que é seu cerne. Tal sistema de valores se tornou secularizado a partir do Renascimento, notadamente em sua cultura e suas pedagogias. A despeito de leituras absurdas e cruéis dessas matrizes, a inteligência laica e pensante agregou, no avanço dos últimos séculos, às matrizes a ação filosófica, educacional e política e criou fundamentos para a pessoa humana no mundo. Depois dos 60 milhões de mortos e vários genocídios da segunda guerra mundial, foram estabelecidos os direitos fundamentais e cresceu o sentido desse fenômeno como garantidor da soberania na sociedade democrática. Os antigos militantes da luta contra a ditadura brasileira ouviram muitas vezes a sua liderança refletir sobre direitos e paz operados pela justiça. Idem sobre as submissões dos ditadores a vozes de comando postas a serviço de interesses da guerra fria. Se a paz, valor final da vida, é fruto da justiça, o direito não se visibiliza e menos ainda a soberania de um povo sem a mesma justiça claramente operada. Algo semelhante à teoria linguística de Noam Chomsky, que propõe a existência de uma competência humana para realizar discursos, mas que só se realiza na efetiva performance, no fazer linguístico. Ainda no campo da linguagem, trata-se de que direito, soberania e paz são enunciações, possibilidades, projetos, indicadores, de fato vividos quando a sociedade é capaz de fazer justiça, o instrumento fundamental para estabelecê-las. Esta é a questão contemporânea grave e cheia de riscos. Precisamos enunciar e anunciar os direitos, a soberania e a paz no planeta de 7 bilhões de pessoas e, particularmente, em nossa terra brasileira, mas faremos ainda pouco se o enunciado não se completar pela operação visível da justiça, equilibrada, por meios jurídicos sempre dignos e marcada por princípios democráticos e republicanos. Os riscos para o tema podem ser listados: que se torne um discurso metafísico e partidário (o partidário dos homens partidos de Drummond), que os supostos direitos sejam contemplados como direitos efetivos, que a suserania tome o lugar da soberania e que a nova atitude complacente, que vê tudo como paisagem, justifique horrores em nome de supostos direitos. As operações da justiça serão os indicadores a serem avaliados, sistematicamente. O que pouco se fez na história do Brasil. Direitos Já e Frente Mista em Defesa da Soberania foram movimentos de caráter social e político lançados nesta semana em São Paulo e Brasília. Chamados equivocadamente de Frentes Amplas (o jornalismo mal informado gosta de decalques e adaptações do passado...), os movimentos citados lotaram auditórios de boa memória democrática, lançaram bem-formulados manifestos e deram a palavra a militantes sociais, os quais convergiram para a evidência dos riscos da existência democrática. Destarte, formularam exigências nos atos de vigiar, vigilar e mobilizar a favor da soberania constitucional da democracia brasileira. Noam Chomsky, presente ao ato paulista, destacou nos discursos de Donald Trump e do ministro britânico Boris Johnson novos sinais do desmantelamento da casa democrática até onde se supunha que ela estivesse sólida. O que de fato Chomsky faz ver é algo que ele persegue como um dos núcleos do seu pensamento, isto é, o fim da sociedade do bem-comum, sinal mais visível do reino dos anti-direitos e da ascensão da suserania contemporânea, que leva à quase impossibilidade de ver, exigir e avaliar as operações de justiça, garantia única do direito, da soberania e da paz, entendida esta como a integralidade do humano na res publica. A fala de Chomsky rebate no manifesto de Brasília, que alerta para a morte das nações por via da desconstrução de sua democracia. Ambos os manifestos, por compactos, falham em conceituar e chegar ao cotidiano do Brasil profundo. Também estão ausentes acúmulos do passado, indispensáveis para que nos compreendamos hoje. No entanto, tais ausências, perigosas por fazer de manifestos objetos metafísicos, podem ser contornadas na sequência dos novos encontros, outras oitivas e aprofundamento da reflexão. O essencial para o momento foi dado: somos diferentes, estamos partidos (como comumente na história brasileira), mas as diferenças não anularão a caminhada comum pelos direitos e pela soberania em risco. Tais riscos, lembre-se, vêm de longe, em contumaz construção mítico-política, sempre atualizada. O senhor Jair Messias teria de estar na retina dos olhos e na memória da gente sensível que lotou os auditórios Nereu Ramos e Tuca. Suas bravatas, sua má-fé diante dos conterrâneos por ele governados, sua ignorância diante das prioridades políticas, seu estímulo e sua compulsão ao mal, suas justificativas para a prática de falsos direitos. Este senhor é a negação de tudo o que se falou e se propôs nas falas e manifestos. Portanto, para que o(s) movimento(s) avance(m), eles não poderão ficar na defensiva dos diversionismos diários do senhor Jair Messias; ao contrário, precisam chegar a milhões de brasileiros e brasileiras (e mesmo atravessar fronteiras), a fim de garantir a mobilização capaz de superar a falsidade e mostrar outros caminhos para a democracia brasileira, agora. Muito além da complacência do formalismo jurídico e legislativo. O que fez o senhor Jair Messias a favor do vasto bioma amazônico desde janeiro? Nada, exceto bravatas ligadas à morte cultural e física do mundo indígena, bajulação a fazendeiros ávidos de lucro, desaparelhamento de instituições ligadas à proteção, sugestão de mineração a qualquer custo, sinalização de asco para com a ecologia regional amazônica e de todo o país e permissão ao uso de venenos agrícolas proibidos em numerosos país. Tudo isso sob os olhares complacentes da maioria de seus eleitores e grupos ávidos do mal, que também não dão qualquer atenção ao futuro de seus filhos e netos! Então, o que irá dizer na ONU o senhor Jair Messias? Nada que possamos aceitar, porque ele está fundamentado num falso direito de dizer qualquer coisa que entender, como fez até agora, sem nosso referendo, permissão ou apoio. Porque ele, do mesmo modo, assume uma postura de suserania e vassalagem, jogando-nos à política medieval. Contra a maioria do povo - segundo atestam pesquisas recentes - ele irá exercer na ONU um anti-direito de um anti-representante do país. Em sua fala não veremos nenhuma operação da justiça. Ao contrário, de alguma forma ele estará declarando guerra contra nós, que não aceitamos suas falas e seus gestos. Em Bolsonaro, os enunciados se envergonham da enunciação. A baixa competência leva a ainda pior performance. Por isso, ele jamais aceita qualquer diálogo, que sempre se realiza em dialética. Esse horror pessoal de que é possuído, ele transfere para o seu desejado fim da cultura e da educação, laica, civil, equitativa, de pesquisa e de ensino com qualidade social – em todos os níveis – no Brasil. Não tem, pois, o direito de ir e falar. Se o fizer, será a ONU diminuída em seu papel político mundial.