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OPINIÃO
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Jair Messias é somente mais um elo da corrente autoritária que o país conhece na história de sua cíclica e débil democracia. Neste continente subtropical, diverso e belo, não se admite a longevidade da vida democrática, obra direta e indireta de donos da terra e outros bens, setores das forças armadas, organizações industriais, legisladores, parte do judiciário, grupos doentios da população e os interesses especiais e circunstanciais das cúpulas políticas e militares dos EUA.
Nem pensar que o problema seja de comunismo versus qualquer coisa. Esse comunismo é berrado por aí e nunca encontrado na prática. Trata-se, efetivamente, de encurtar experiências democráticas no Brasil e alargar projetos autoritários, que ao fim e ao cabo definem uma sociedade que não precisa de mais que um dado oficial para provar a tese: 10% dos mais ricos concentram metade de todos os bens do país. Também comem o melhor da comida do país e ocupam posições estratégicas.
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Tal realidade pode ocorrer sem tanques nas ruas e sem atos institucionais. Basta construir desigualdades e negar a equidade de modo sistemático até construir mitos. E os grupos sistematicamente empobrecidos, que passam de 30%, não são vagabundos (lembremo-nos de Noel Rosa, Adoniram Barbosa e demais na literatura brasileira), mas vivem sob a mira de snipers e pistoleiros, ora do Witzel, ora do Médici, ora dos subordinados a Getúlio, assim como de presidentes eleitos e imperadores. Interessante é que essa mitificação do poder, sua concentração e sua fabricação de miséria vai se alternando com mais clareza após a chegada – a fuga – da família real portuguesa em 1808. A partir de então, temos mais elementos para compulsar e refletir, pois há mais imprensa, literatura e debate. A matança foi e é ampla, mas seletiva. No entanto, campeã do mundo em razão da mitificação mais completa, como se mostra a seguir. Ocorre no campo, na floresta, nas corporações do trabalho, na luta política, na falsa e inexistente bala perdida, no movimento social. A metodologia da matança foi dada pelo mundo português que esquartejou Tiradentes. O esquartejamento físico e simbólico dos pobres e dos que reagem (comunistas? subversivos?) continua, hoje e sempre. E por que ninguém se enrubesce, nem se culpa, nem acredita no mal que faz? Porque cria justificativas, fruto da mitificação, tanto no roubo da maçã, no grito pela terra, na defesa intransigente de direitos, no uso da liberdade de imprensa, no clamor dos pais desorientados. As justificativas vão do comunismo ao banditismo e à impossibilidade de recuperação das pessoas. Tudo isso temos na boca cotidiana do senhor que preside o país. Daí que ele é um dos elos da tradição que erode a democracia. Há um genocídio no país, fenômeno que engana (pior, é aceito) por milhões de cabeças que se entendem como cristãs, bons pais, cidadãos que fazem coleta seletiva de lixo ou contribuem para instituições de caridade. A ação aritmética da bondade leva água ao moinho poderoso do mal que corrói geometricamente a democracia e isto é o mito, conforme o entende o melhor explicador da questão no Ocidente, Roland Barthes. O mito exige que se realize um acordo simbólico, isto é, um acordo forte que junte os comprometidos com os projetos de poder para inovar, reformar, modernizar, modificar o Brasil, bastando para isso que sempre fique igual quanto ao mando e ao poder. Entenda-se aí momentos democratizantes breves. Nesse sentido, pode-se mudar tudo, bastando que profundamente nada se mude. Daí se entende a retórica do Guedes e do Bolsonaro: vender, reformar, alienar, oferecer, mas de fato nada mudar quanto ao principal, isto é, ter à disposição o exército de pobres e necessitados, flexibilizados pelos regimes de trabalho ou sem trabalho algum. Quando necessário, criam-se canais de acesso a algum recurso, que depois volta ao caixa dos governos e das corporações de lucros, sem poupança. Do mesmo modo, cabe historicamente alardear que educação é prioridade, enquanto se joga 5 milhões de adolescentes empobrecidos, sem eira nem beira, na mira dos pistoleiros, militares ou não. A educação é, sem medo de errar (sendo educador há 50 anos), uma das atividades republicanas menos importantes deste país. Vide o real. O resto é gogó e mitificação. Mas, e por isso mesmo, segue-se a luta pela educação e pela cultura, sem as quais democracia é conversa fiada. O mito, antigo e de hoje, como pensa Barthes, se realiza quando setores da sociedade subtraem e capturam a história, por meio da criação de uma capa de propaganda e censura, produção de diversionismo na sociedade (as bobagens se tornam importantes), ênfase em símbolos pátrios e repetição de mentiras à exaustão, como se depreende do estudo dos textos anticomunistas prévios aos golpes de 1936 e 1964, do comportamento de membros da Lava Jato, das falas do Jair e do Salles sobre a Amazônia e de milhões de mensagens nas campanhas eleitorais recentes), o que, no sufoco dos direitos de expressão coletiva, põe a história capturada (incapaz de se mover a favor do novo e da mudança) a serviço dos grupos dirigentes. Esse método de construção do mito tem sido quase infalível na América Latina. Assim, perpetuam-se os ciclos de pontos de democracia e aguilhões de autoritarismo e mesmo ditaduras. Não adianta nada, para a análise sociológica e antropológica, mostrar que o país tem bons fundamentos econômicos e estruturas democráticas sólidas nos congressos e no judiciário. Ora, não há nenhuma verdade nisso, pois a velhíssima democracia supõe que fundamentos econômicos e jurídicos se realizem, celeremente, a favor dos que necessitam de inclusão no processo pleno da democracia. Qual a democracia que se sustenta com 60.000 pobres e ativistas mortos? Só mesmo pela mitificação, que entende mortos e desaparecidos como gente do mal. Pelo exposto, especialmente via mitificação da sociedade brasileira (e latino-americana), nossa degradação democrática se move, outra vez, firme e forte, seja com pibinho, seja com pibão. De outro lado, que democracia é essa na qual parlamentares se vendem por emendas, isto é, constroem uma ponte ou uma escola em sua cidade pelo voto que pode fazer mal a milhões de conterrâneos? Com a palavra, os que pensam diferentemente. Preferivelmente, com bons argumentos. Sem xingamentos ou malefícios à língua, pois estes já fazem parte do mito, visto que engolem a história da razão que porventura nos educou. E também não são obra do Cristianismo.