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OPINIÃO
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O relativo desapontamento com Bohemian Rhapsody (dir. Bryan Singer, 2018) fala por si só: para um personagem como Freddie Mercury, de quem as aparições midiáticas reiteram uma recusa ao comportamento normativo, foi produzida uma cinebiografia higienizada, comportada, palatável a um consumo heteronormativo, em que Mercury aparece como um homem gay inocente, pervertido por um produtor diabólico que usa sua sexualidade contra ele. Além disso, o filme experimenta pouco com a linguagem cinematográfica e com as possibilidades de excesso que estão dadas pela própria produção midiática de Mercury.
Tendo Bohemian Rhapsody como a lembrança mais próxima de uma cinebiografia do pop, Rocketman (dir. Dexter Fletcher), que estreia esta quinta-feira (30/5) no Brasil, já aparece como um conjunto de boas surpresas. Este é um filme musical, excessivo, flamboyant e que abraça o pop sem remorso. Taron Egerton interpreta Elton John, da juventude em um bairro de classe operária na Inglaterra até a reabilitação contra a dependência de álcool e outras drogas, já então como uma das maiores estrelas da música de seu tempo. Neste filme, a sexualidade de John está em cena, assim como estão em cena outros comportamentos não normativos do artista. O que o texto escolhe colocar em cena, no entanto, está intimamente ligado a como essa história é colocada em cena. E é neste ponto que o filme se revela mais animador.
Em Rocketman, o gênero do filme musical é encenado como uma alternativa para se dar conta de um personagem complexo, fazendo com que o desenvolvimento desse Elton John que vemos em cena seja atravessado por sua obra musical, cantada não apenas por Egerton, mas também pelos outros personagens encenados nessa narrativa biográfica (sua família, seu amigos e parceiros de trabalho). Em primeira instância, portanto, o musical como gênero fílmico já permite uma impressão de coerência entre a empreitada biográfica e a obra do artista (o que a desatenção aos números musicais em Bohemian Rhapsody, para voltar à comparação mais óbvia, não permitia).
O mais importante, no entanto, é que o musical, abraçado como gênero, produz um universo para fora da diegese biográfica, provocando rupturas dentro dessa estrutura convencional de ordenação dos fatos (típica das cinebiografias hollywoodianas) e cedendo a uma fantasia inerente à produção de mundo da música pop. São esses rompimentos musicais com a cronologia de Elton John (vida e obra) que mais se aproximam do que John, pela maior parte de sua carreira, coloca em cena: a abundância visual que se justifica por si mesma, o exagero despropositado, o virtuosismo exorbitante.
Sobre essas reiterações estéticas, Dexter Fletcher, o diretor do filme, é muito feliz em compreender a produção de John não como fruto independente da mente de um gênio da música, mas enraizada na sua integração a uma comunidade. Por um lado, isso se dá de maneira evidente: por boa parte dessa carreira inicial, John não escreve a letra de suas músicas, então o seu letrista, Bernie Taupin (Jamie Bell), frequentemente aparece como uma voz silenciosa que se faz ouvida pela voz de John, e isso é muito bem articulado pelo filme. Por outro lado, menos evidente, Fletcher filma a trajetória do artista também como uma trajetória de sua relação com o seu entorno. Pelo primeiro ato do filme, por exemplo, a cidade de Pinner, ao norte de Londres, aparece quase como um personagem por si só: o filme se interessa pela paisagem do bairro, pela arquitetura do espaço doméstico, pelo que se ouve na casa de Elton John (Elvis Presley) e pelo que eles assistem na televisão (Liberace). Somos levados, assim, a identificar a obra de John como uma continuidade das produções afetivas desse lugar.
É muito prazeroso ver como Rocketman articula o legado de uma personalidade como Elton John em um filme que dá conta tanto da construção do personagem quanto da sua inventividade. Se ainda se repetem alguns vícios das cinebiografias, como a necessidade de resolver uma série de acontecimentos espalhados em um largo período de tempo e a redução de personagens secundários a papéis arquetípicos ou estereotipados (mais uma vez temos um homem gay ganancioso aparecendo como vilão da narrativa), isso não impede que Rocketman surja como um dos melhores e mais sedutores musicais da nossa década. Que o possível sucesso desse filme, entre o lançamento de dois grandes blockbusters musicais, Aladdin (dir. Guy Ritchie) e O rei leão (dir. Jon Favreau), seja visto como oportunidade para um investimento renovado no gênero – e em seus excessos pouco comportados.