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OPINIÃO
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Mais um amigo se foi desta para uma melhor. Era um pouco mais velho do que eu. Lembrando de uma história dele, lembrei-me também da polêmica sobre o relançamento de livros de Monteiro Lobato, especialmente “As caçadas de Pedrinho”. Se fosse um livro escrito atualmente, com certeza seria impublicável, pois caçar animais silvestres é pra lá de incorreto. Quando foi escrito, caçar era coisa considerada “normal”.
Na época em que se passa esta historinha do meu amigo, final dos anos 1950 ou início dos 60, numa cidadezinha pequena (mas em outros lugares também), era “normal”, por exemplo, jovens irem a prostíbulos. As moças chamadas “de família” tinham que se casar virgens, e os jovens sequiosos por sexo recorriam a prostitutas. Incorreto também. Mas não havia consciência disso.
Não vou citar o nome do meu amigo, vou chamá-lo de Zé. Era um rapazola boêmio, seresteiro e praticante da então considerada saudável atividade de roubar frangos para cozinhar e cear com outros boêmios nos botecos, de madrugada. Mesmo para um sujeito de 15 ou 16 anos, isso não era muito malvisto lá.
E não é que ele foi estudar num colégio agrícola em uma cidade vizinha, em regime de internato, duríssimo, com hora para dormir, hora para estudar, hora para tomar banho (sempre frio), hora para praticar esportes, hora para tudo? Não combinava com ele.
As luzes dos dormitórios eram apagadas às 9 horas da noite, em ponto. E todo mundo tinha que dormir. Mas três estudantes não se conformavam com isso. O Zé era um deles. Esperavam uns vinte minutos, abriam a janela do dormitório, pulavam para fora e iam para a cidade, a três quilômetros de distância. Bebiam, iam para a zona, se divertiam e voltavam lá pelas três da manhã. Fizeram isso durante meses. Até que um dia foram vistos às onze horas da noite num bar, pelo inspetor de alunos, que tinha ido à cidade por um motivo qualquer.
O inspetor não foi visto por eles, nem lhes falou nada no dia seguinte. Mas falou com o diretor, um sujeito que combinava bem com o regime de internato da escola. Procurava tornar cada vez mais regulada e “organizada” a vida lá dentro. E “organizada” para ele era isso de horário para acordar, horário pra dormir, horário pra estudar... e coisas piores ainda.
Quem fugisse do padrão estava sujeito a castigos chamados “cadeia”, que consistiam em ficar o fim de semana na escola, sem ir à cidade. Conforme a falta (fumar, roubar frutas no pomar, brigar, discutir com um professor...) a cadeia podia ser por uma semana, duas, um mês... Mas não pense que era só ficar lá à toa: cadeia, para a direção da escola, tinha que ser com trabalhos forçados. Então, ela incluía tarefas que eram sempre capinar um determinado espaço por dia. A cada reincidência a pena ia aumentando, e podia acabar em expulsão.
A cilada foi armada pelo diretor e pelo inspetor de alunos. As luzes dos cinco dormitórios se apagaram, os três deram um tempo, pularam a janela e saíram para a cidade. Neste momento entrou o diretor, acompanhado do inspetor de alunos e outros funcionários para servirem de testemunha. Acenderam as luzes e comprovaram: as camas dos três estavam vazias. Seus ocupantes tinham então cometido falta gravíssima. Apagaram as luzes e ficaram dentro do dormitório, sem dar chance para que algum colega saísse para ir à cidade avisar os companheiros.
Por volta de três horas, abre-se a janela. No dormitório, os colegas, quase todos estavam acordados, sentindo-se impotentes por não poderem avisar sobre o que acontecia. Pularam a janela. Os três, meio bêbados. Nesse instante o diretor acendeu a luz e foi logo dizendo:
— Os três estão expulsos. Arrumem suas coisas logo cedo para irem embora. Não podem ficar nem mais um dia aqui.
— Mas professor... — tentou falar um deles.
— Expulsos! Ex-pul-sos!
O estudante ainda tentou conseguir minimizar a pena:
— Deixa por um mês de cadeia...
— Expulsos. Ex-pul-sos!
— A gente não faz mais isso — disse outro, enquanto o Zé continuava calado.
— Expulsos. Ex-pul-sos! Arrumem suas coisas.
Os dois conseguiram, enfim, argumentar, falar do futuro deles que ficaria com uma mancha, por besteira. E a família? Como ficaria? O diretor nunca cometeu nenhuma falha quando era estudante? E se seu filho, ainda criança, um dia caísse na tentação de uma gandaia proibida? Mas o diretor era lacônico: só falava “expulso” e “arrumem suas coisas”.
Foi aí que o Zé, até então calado, resolveu entrar na conversa. Puxou os colegas e disse:
— Deixa que eu falo com ele.
Como já tinham esgotado seus argumentos, deixaram, imaginando que o Zé teria algo mais forte e comovedor. Calaram-se. Até o diretor fez uma cara de que queria ouvir. E seguiu-se o diálogo entre o estudante e o diretor:
— O senhor quer mesmo expulsar a gente?
— Sim. Vocês estão expulsos.
— Não tem jeito mesmo?
— Não tem jeito.
— Então vai pra puta que o pariu seu filho duma puta, viado, corno, broxa, pensa que eu não sei que enquanto você fica com essa viadagem pra cima da gente a sua mulher tá pulando a cerca, dando pros vizinhos, chupando rola...
Falou mais um monte de impropérios até ser contido pelos colegas e pelo inspetor de alunos. Já que não adiantava argumentar com a “autoridade”, fez a alegria da torcida, os colegas que estavam no dormitório e contariam para todo mundo. Enfim, os três estavam expulsos... Ex-pul-sos! De manhã o Zé tinha um ar muito alegre enquanto ia embora, abanando a mão para o diretor.