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OPINIÃO
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Lembro que quando criança, eu morria de medo do “velho do saco”. Quando eu não queria comer, quando ficava de pirraça, minha mãe gritava, olhando pra porta da sala: “Vem velho do saco pegar esse menino malcriado e desobediente”.
Eu me tremia todo, com medo do velho me jogar dentro do saco e me levar sabe Deus pra onde. Quando querem e precisam, as mães sabem ser cruéis.
Foi exatamente a imagem de uma criança tremendo de medo do velho do saco que me veio à cabeça em 1 de março, sexta-feira de carnaval, quando o Presidente Lula deixou a prisão para o sepultamento de seu neto, o menino Arthur.
Aparato de segurança hollywoodiano, homens armados até os dentes para escoltar um velho de 73 anos. Era como se ali estivesse um homem muito perigoso, alguém tão poderoso que com um sopro fosse capaz de derrubar o país.
Ainda que conserve a elegância no andar, a postura ereta e altiva dos tempos da juventude, os cabelos grisalhos e as rugas não conseguem esconder verdade óbvia: Lula é um idoso com 73 anos.
Por que um velho é capaz de assustar tanto o governo da décima maior economia do mundo?
Antes de tudo, é importante dizer que o velho não é um velho comum, como outro qualquer. É óbvio!
Lula deixou de ser um homem comum quando subiu a rampa do Palácio do Planalto. Naquele momento o homem morreu e nasceu uma instituição. É que Lula não foi um Presidente comum, como outro qualquer.
A vitória eleitoral de Lula representou o encontro do Brasil com a sua identidade profunda. Pela primeira vez, um político nascido e criado nas bases da sociedade chegava ao topo do poder. O operário nordestino e sem curso superior tornava-se Presidente da República proclamada pelos bacharéis.
Lula assusta o governo porque é a instituição mais poderosa e influente da história política brasileira. Mas o que representa essa instituição?
Ao longo dos anos, Lula mudou, se transformou, o que nos permite falar em dois Lulas: o primeiro Lula nasceu nas greves do ABC paulista e morreu em 1994, na ocasião da segunda derrota presidencial.
O segundo Lula nasceu na derrota de 1998, a terceira, e está vivo até hoje. Esse não morrerá nunca.
Mudou os trajes, a barba embranqueceu, passou a ser cuidadosamente aparada. Terno e gravata se tornaram uniforme de trabalho. A aliança com Brizola e com a herança trabalhista apontava para um amadurecimento político que se consolidaria plenamente quatro anos depois.
Lula começava a entender que o Brasil não precisava de um grevista, mas sim de um líder popular capaz de colocar o pobre no orçamento do Estado.
No final da década de 1970, Lula liderava o “novo sindicalismo” que pretendia ser independente da tutela do Estado. Lula negava o sindicalismo corporativo dos tempos de Getúlio, dizia que a CLT era fascista e defendia o fim da justiça do trabalho e a livre negociação entre patrões e empregados.
Ah, os jovens, sempre tão afoitos.
Brizola, experimentado que era, ironizava, dizendo que o PT era a UDN de macacão. O jovem Lula respondia, afirmando que Brizola era cria de populista e ditador. Brizola entendia o Brasil.
O tempo passa e as pessoas envelhecem, felizmente.
O Presidente Lula fortaleceu a justiça do trabalho porque entendeu que só existe livre negociação entre iguais. Patrão e empregado não são iguais. Outra verdade óbvia.
Finalmente, Lula entendia o Brasil, entendia que no capitalismo periférico, em uma sociedade de modernização incompleta, o Estado não é o inimigo a ser combatido. É território a ser ocupado, ainda que a custo de concessões, de dolorosas concessões.
No Brasil, o Estado tem uma missão civilizatória a ser feita na forma de políticas públicas que garantam direitos sociais básicos.
Nos governos de Lula o Estado cumpriu essa função, uma função, repito, civilizatória. A população entendeu e entendeu tanto que Lula se transformou na personificação do Estado provedor de direitos sociais.
É exatamente esse o sentido da instituição Lula: o Estado que garante o básico, comida no prato, água gelada na geladeira, fogão pra cozinhar e até uma televisãozinha pra assistir novela. Não chega a ser distribuição de riqueza. De comunismo, de socialismo chega nem perto. É o Estado provendo o básico.
Por isso, Lula assusta tanto o governo. Bolsonaro foi eleito representando os mesmos interesses que levaram Temer à Presidência em meados de 2016. O objetivo é claro: o desmonte do Estado, o ataque à vocação assistencialista do Estado moderno brasileiro.
PEC dos gastos, reforma trabalhista, reforma da previdência. Todas apontam para o mesmo sentido: retirar do Estado os aparelhos institucionais de intervenção na sociedade, de garantia de acesso a direitos sociais básicos.
Bolsonaro não é apenas sucessor de Temer. É herdeiro também.
Os responsáveis pelo desmonte sabem perfeitamente que Lula representa a antítese desse projeto: Lula é o Estado que atua, que ampara. Por isso, foi preso e está sendo mantido em um regime penal de exceção.
Lula não pode dar entrevista, não pode falar. Também não pode morrer, pois os desdobramentos seriam imprevisíveis. O governo precisa que Lula fique onde está, completamente isolado, silenciado.
Lula não é preso da justiça. É preso do governo. O juiz que condenou se tornou Ministro de Estado. Nunca é demais lembrar.
Como a vida é feita de imprevistos, o menino Arthur morreu.
Não dava pra impedir o avô de sair para enterrar o netinho. A comunidade internacional acompanha com atenção a situação de Lula. A candidatura do ex-Presidente ao Prêmio Nobel da Paz está formalizada. O governo precisou ceder, teve que ceder. Pela primeira vez desde que foi preso, Lula saiu da cadeia, foi visto, teve contato com o povo.
O velho saiu da jaula e o governo tremeu. Avião, escolta armada, todo um aparato para neutralizar um velho, um velho.
Lula não podia falar, não podia acenar, o ideal mesmo é que nem fosse visto.
É claro que o velho foi visto, e pelo mundo inteiro. A simples imagem de um homem que representa um certo modelo de Estado, em si, é um evento político de primeira importância. Lula é uma instituição tão conhecida que os discursos já se tornaram redundantes. Basta que ele apareça para que todos saibam quem está ali.
Por algumas horas, na pessoa de um velho de 73 anos, de um avô destruído pela morte do neto, o Estado provedor brasileiro saiu do cárcere e viu a luz do sol. Andou, acenou. Por onde passou, o povo gritou e chorou.
O velho voltou pra cela e o governo respirou aliviado, como o menino que depois de raspar o prato ouve a mãe dizer “pode ir embora, velho do saco, ele comeu tudinho”.
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