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OPINIÃO
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Há pouco menos de um ano, quando foi morta Marielle Franco, amigos meus, ativos militantes contra a discriminação racial, afirmaram que o crime era mais um passo na escalada de genocídio do povo negro no Brasil. Na ocasião, publiquei artigo no jornal “O Dia”, do Rio, em que a questão central era a denúncia do assassinato, claro. Mas, nele, eu manifestava discordância quanto ao uso da expressão genocídio para o caso brasileiro.
Isso não me fazia condenar com menor ênfase o bárbaro crime que vitimou Marielle, nem deixar de criticar com toda veemência o racismo. Mas minha intenção era, simplesmente, não vulgarizar a expressão “genocídio”. Fiz isso consciente de que alguns amigos negros, muito queridos, receberiam com reservas o que eu dizia.
Escrevi:
“No século XX tivemos pelo menos três exemplos de genocídio. O primeiro foi o perpetrado por turcos, ao matarem 1,5 milhão de armênios entre 1915 e 1923.
Depois veio o Holocausto, quando o nazismo vitimou seis milhões de judeus, além de outros tantos soviéticos, democratas e socialistas, durante a Segunda Guerra Mundial.
E, por fim, o ocorrido em Ruanda, em 1994, quando, num conflito étnico, hutus assassinaram entre 500 mil e um milhão de tutsis.
Não há, no Brasil, situação semelhante.
Mas, repito, isso não significa desconhecer a violência contra os pobres, majoritariamente negros, nem a existência de racismo, o mais repulsivo comportamento que um ser humano pode ter em relação a outro”. (O texto foi publicado em 3/4/2018)
Genocídio é o extermínio deliberado e sistemático de grupos de seres humanos tendo como motivação diferenças étnicas, nacionais, políticas ou religiosas e tendo como objetivo a extinção de todos os integrantes de grupo humano atingido. Por mais criminosa que seja a violência policial, não é isso o que existe no Brasil.
Felizmente aqueles meus amigos negros compreenderam que o que tínhamos ali era apenas uma diferença quanto ao conceito a ser utilizado, mas que na essência estávamos juntos. Nossa amizade e nossa relação política não foram afetadas.
Pois hoje já começo a pensar se não é o caso de se buscar uma outra expressão – ainda que distinta de genocídio – para retratar o que está ocorrendo no Brasil com os pobres. Eles são negros ou têm sangue negro, em sua imensa maioria, ainda que a meu ver a denominação mais correta para a sua cor (assim como para a da maior parte da população do país – e eu me incluo nesse grupo) seria de “cor brasileira”, uma rica e linda mistura de negros, brancos e índios.
Mas em nossa sempre desigual sociedade, a exclusão social está crescendo numa tal intensidade que uma enorme quantidade de pessoas está sendo jogada rapidamente no limite da sobrevivência, morrendo aos poucos de fome, abandono e doenças. Ou, ainda, assassinada pela polícia.
Quem quer que caminhe pelas ruas do Rio (e o quadro não é muito diferente em outras cidades) assiste a um espetáculo dantesco: uma quantidade enorme de pessoas estão largadas nas calçadas.
Não estou falando dos chamados trombadinhas, grupos de crianças e adolescentes como aquele retratado por Jorge Amado em seu “Capitães da areia”, que em 1937 chamava a atenção para o abandono da infância. Jorge Amado, já na época, destoava do senso comum por tratar com rara generosidade e senso de humanidade aqueles meninos que a sociedade bem-pensante da capital baiana via quase que como bichos de alta periculosidade.
Posteriormente, com a sua habitual sensibilidade, Chico Buarque voltaria ao tema com a música “Meu guri”, que retrata a situação de um garoto desses, visto pelos olhos da mãe.
Vagando pelas ruas, os trombadinhas viviam da caridade de alguns e de pequenos furtos que cometiam, nos quais a violência mais grave era, eventualmente, derrubarem uma senhora ao lhe tirarem a bolsa. De tempos em tempos, frequentavam as páginas policiais dos jornais por serem apanhados cometendo um delito ou acabarem vítimas da selvageria da polícia, tal como ocorreu na chacina da Candelária, em junho de 1993.
Esse quadro está mudando. Para pior. Hoje a principal expressão do abandono dos mais vulneráveis não é mais formada pelos capitães da areia, de Jorge Amado, ou pelos guris, de Chico. Não significa que não haja mais trombadinhas. Mas já não são só eles.
Cada vez mais as ruas estão sendo a moradia de grupos inteiros, às vezes famílias, com pessoas de todas as idades, esfaimadas e sujas. Elas ocupam as vias públicas e sequer pedem esmolas, de tão derrotadas estão. Raramente cometem pequenos delitos, mesmo que passem fome. Estão sem forças para isso. Limitam-se a ficar por ali, maculando a paisagem. No máximo, como em outra música de Chico Buarque, “caem na contramão atrapalhando o trânsito”. Só que, neste caso, não o trânsito das ruas e dos carros, mas o das calçadas e das gentes.
As pessoas passam. Umas poucas mostram incômodo com o cenário. Outras, não. Já estão acostumadas. Fingem que não veem aquilo. Ou, sinceramente, já não veem mesmo. E não o fazem por mal. Os farrapos de pessoas humanas à sua frente tornaram-se invisíveis. É como se não existissem. Ou como se fossem parte natural do cenário. Talvez, até, alguns dos passantes nem saibam se estão vivos ou mortos. E – falando francamente - será que se interessariam em saber?
As medidas do governo Bolsonaro vão agravar esse quadro. Todas – absolutamente todas, sem exceção – são para engordar os lucros dos tubarões (e, em particular os dos bancos). Vão ferrar ainda mais os de baixo. E vão ferrar não só os que já estão na indigência, mas, também, um segmento que ainda não está tão lascado como esse pessoal, mas que, em breve, será seu companheiro nas ruas.
O amigo-irmão-camarada Milton Temer, parceiro de lutas e da vida, postou semana passada nas redes sociais um belo texto chamando a atenção para o problema. E usou uma expressão necessária para o momento: “Genocídio social”.
“A Previdência é o primeiro passo de um pretendido genocídio social. (...) O que se pretende é muito mais: a entrega final do que ainda resta de patrimônio público lucrativo aos maganos do mercado” – disse ele.
Se esse rumo não for barrado, o cenário para os próximos tempos será mesmo de genocídio social. Será de aumento de zumbis vagando pelas ruas, jogados ao léu. Será de crescimento da mortalidade infantil. Será da multiplicação do número de assassinatos de jovens nas favelas e comunidades pobres, por uma polícia braço armado de um Estado voltado para manter as injustiças, indiferente à situação de miséria. Será de um ainda maior abandono de idosos e vulneráveis.
A realidade que estamos vivendo pode não ser exatamente a mesma dos exemplos de genocídio que dei no início do artigo e que são usados como exemplos históricos. Mas é, sim, algo que foge – e muito – de uma situação que possa se considerar como de normalidade. É mesmo uma espécie de “genocídio social”, para usar a feliz expressão do Temer do bem.
Um genocídio lento, gradual e seguro.
Rumo à barbárie.
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