Escrito en
OPINIÃO
el
Coautoria de Wendel Barbosa*
O discurso da eterna vigilância pressupõe a construção de inimigos da sociedade que justificarão a atuação da polícia e o próprio papel do Estado como mantenedor da ordem. As classes dominantes redefinem o conceito de criminalidade, de “classe perigosa”, que passa a atrelar-se segundo uma possível contestação de sua dominação. Não à toa, boa parte da pauta política do governo Bolsonaro se funda em aumentar o poder repressivo das forças de segurança.
O grande truque das classes dirigentes é fazer com que a sociedade passe a acreditar na proteção contra o “inimigo” comum, criando um discurso de legitimidade. Em um documento sobre o ciclo de conferências realizadas pela polícia política de Vargas, em 1943, sob a direção do delegado especial, major J. L. Amaro da Silveira, é abordado, entre outros, a importância do relacionamento da Polícia com o público. Existia toda uma preocupação em criar um “sentimento real de respeito e de admiração e um espírito de cooperação”, evitando o aparecimento de “descontentamentos, antagonismos e críticas (...) que geralmente acompanham a desaprovação dos atos da Polícia pelo público (1)”. Dessa forma, a sua utilidade passa também pela sua aprovação pela sociedade.
É interessante pensar que quase oitenta anos depois, a corporação não consiga colocar em prática um dos princípios norteadores apontados lá atrás, nos anos de 1940. O que vemos, atualmente, é uma polícia que delega pra segundo plano a busca pela aprovação de seus atos pela sociedade. Simplesmente, não há uma tentativa de se construir uma imagem positiva da mesma junto à opinião pública como um todo. O que se exprime é uma “pedagogia opressora” na medida em que o sentimento de “respeito e admiração” foram trocados pelo medo do cidadão frente aos mesmos. Existem alguns elementos que podem ser colocados como alguns dos motivos para isso.
As atividades policiais compreendem, dentre tantas, a prevenção e repressão ao crime; prisão do criminoso; recuperação da propriedade; e regulamentação da conduta. No ano de 2015, o curso de formação de policiais militares no estado do Rio de Janeiro, foi ampliado de sete para, extraordinários, doze meses (dez meses para formação teórica e mais dois meses de estágio supervisionado). O interessante é que em qualquer curso de formação profissional – principalmente aqueles que não envolvam atividades tão primordiais como a da PM – a carga horária é muito maior do que a exigida pela corporação. Um médico estuda anos para poder exercer sua profissão, assim como um engenheiro, professor, arquiteto, agrônomo etc. Mas, aos olhos do Estado, um cidadão comum, em menos de um ano, estará apto para portar uma arma e exercer, exemplarmente, sua função como policial.
Salvo essa questão do tempo de preparo desses profissionais, temos de levar em conta toda uma cultura política que enxerga no policial o papel social de carrasco da delinquência. Esse papel autoritário e violento é fruto, em boa medida, de certo resquício do período da ditadura militar (1964-1985). Portanto, a duração do curso de formação não denota, por si só, um efetivo preparo dos agentes de segurança. Até porque as disciplinas que compõem a grade curricular pouco abordam, dentre outros, temas como direito penal, constitucional, cultura cidadã e direitos humanos (2). Ou seja, o curso pode até ter uma duração maior, mas a qualidade do que é oferecido aos aspirantes ao cargo – somados aos abusos que alguns praças sofrem – está muito abaixo do ideal.
Gostamos de acreditar na ideia de que o “mau policial” é uma exceção à regra. Porém, existem evidências – ligadas à atuação dos agentes da lei na sociedade – que acabam nos mostrando o contrário: o “bom policial”, infelizmente, é a exceção. Existem excelentes profissionais, é verdade, mas muitos miram a profissão já pensando nos “acertos” com o chefe do tráfico ou com as milícias (essa última, composta em quase sua totalidade por agentes da segurança). E o tempo, que tudo nos mostra, estampa bem na nossa cara essa realidade. Na medida em que, em pouco tempo, vemos o patrimônio de muitos desses PMs aumentarem de uma forma incomensurável. Algo, totalmente, incompatível com o salário de miséria que o governo do estado oferece aos seus servidores, não importa a pasta.
Temos a principio, portanto, duas misturas explosivas: 1) a falta de preparo e 2) a corrupção entranhada profundamente na estrutura da Polícia Militar. O sucateamento da força – incluindo aí os baixos salários – pelo poder estatal, adiciona um ingrediente a mais nessa bomba que vai às ruas para, discursivamente, garantir a ordem e a segurança dos cidadãos. E qual é o resultado disso? Medo e morte! Principalmente, se você for pobre e negro. Se você for professor, então, as coisas ficam mais sérias. Para esse aí não tem essa de cor de pele e status social. A violência das forças de segurança aos profissionais da área de educação se dá “democraticamente”. Algo que não vemos em qualquer lugar do mundo. Acreditamos que deva fazer parte de certo tempero tupiniquim.
O fato é que muito antes de Bolsonaro e Moro alegarem querer dar carta branca para a PM matar, ela já fazia isso. Sempre fez! Em 2008, Philip Alstom, relator especial da ONU para execuções sumárias, chegou a dizer que a polícia brasileira tem carta branca para matar. Palavras dele, não do Bolsonaro. E isso, num sentido literal. Algo reforçado pelo jornalista Mauro Donato, que declarou que a licença para matar que o Presidente e Ministro da Segurança querem dar a polícia, eles já possuem (3). As PMs do Rio de Janeiro e São Paulo matam mais do que todos os países com pena de morte... somados. Segundo relatório da Anistia Internacional, em 2015, a polícia brasileira é a que mais mata no mundo. “Em geral, são homicídios de pessoas já rendidas, que já foram feridas ou alvejadas sem qualquer aviso prévio (4)”. Com a nova alteração do Código Penal, proposta por Moro, agentes de segurança poderão matar em caso de legítima defesa.
A título de curiosidade, em 2011, 42% das mortes realizadas pelos agentes de segurança de RJ e SP, foram registradas como autos de resistência (morte decorrente de oposição à intervenção policial). No primeiro semestre de 2018, houve um aumento desses registros. Sobretudo em áreas onde a intervenção federal não havia chegado, como na Baixada Fluminense (5).
Violência: um instrumento político
O mais curioso em toda essa história é que as únicas instituições que o povo aumentou sua confiança foram as redes sociais e a polícia, as duas que levaram a vitória de Jair Bolsonaro. E, em contrapartida, a instituição que mais perdeu a confiança entre os brasileiros são os sindicatos, setor que lembra a imagem do PT e do ex-presidente Lula (6).
E ainda mais curioso é o fato de medo e confiança andarem juntos, pois, embora seja registrado um tímido aumento da confiança em relação à polícia, uma pesquisa realizada pelo Datafolha revela que “49% dos brasileiros têm medo de ser alvo de violência por parte da Polícia Militar e 60% têm medo de andar nas ruas da vizinhança depois do anoitecer. Um terço (35%), no entanto, tem medo das duas coisas” (7).
Para o cidadão, o policial tem que matar, mas sabe o impacto dessa política criminal em sua comunidade. Os 27 tiroteios por dia em média na região Metropolitana do Rio de Janeiro, em 2018, ilustram o que estamos querendo dizer aqui. Já que, ainda sim, em setembro do ano passado 76% queriam prorrogar a intervenção federal, embora 71% não vissem melhora (8). As pessoas passaram a confiar naquilo que temem, uma lógica hobbesiana que legitima o autoritarismo. Sabe-se que não resolve, mas é saciado o desejo por vingança.
Assim como José Cláudio Souza Alves disse para a Baixada Fluminense que “a não consideração do caráter político da violência na fundamentação de formas concretas de poder local acarreta expectativas por demais ilusórias” (9) para se entender a manutenção de um padrão de violência (da polícia, dos grupos de extermínio e dos traficantes), rejeitar esse mesmo caráter na política que se estabeleceu com a chegada de Bolsonaro no poder, seria no mínimo ingênuo.
Dessa forma, preparem-se! Com essa reciclagem, por parte do Ministro Moro, do pacote anticorrupção, o ano de 2019 prenuncia muito mais tragédias do que as que presenciamos nesses primeiros quarenta dias. Enquanto não há pronunciamentos sobre os laranjas do partido do presidente, uma corrupção confessada internamente, nada é feito para impedir que o indivíduo entre na vida do crime. Pelo contrário, o Estado, como o fez no período das demolições da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX, procura tirar mais direitos e assistência social à medida que aumenta a repressão.
Como disse o historiador Marcos Bretas, a repressão policial aumentava devido a pressão das elites (10), e o pacote proposto pelo Ministro da Justiça veio no momento que as elites mais precisam proteger seu projeto cruel de reformas, pois os protestos contra as medidas do governo podem causar transtornos, assim como a pobreza, a mendicância (o que ajudará no recrutamento de novos criminosos), que vem ganhando corpo desde 2016.
Isso nos leva a uma conclusão: quanto menos direitos, maior a presença da violência. Nos lugares onde as pessoas têm os direitos violados, direito à saúde, à educação etc., a violência, tanto estatal quanto ilegal (que entendemos ser parte da mesma lógica política, pois a própria violência legítima é usada, em muitos casos, ilegalmente), acaba por ser maior. Portanto, quando se quer tornar legal a perda dos direitos, o aumento da violência legítima, estatal, usada legalmente, tende a aumentar obrigatoriamente.
*Wendel Barbosa é pós-graduado em História Social e Cultural do Brasil pela FEUC e professor da rede estadual de ensino
(1)ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. BR APERJ DESPS. Notação 921. Série Dossiês, 1943
(2)https://exame.abril.com.br/brasil/formacao-da-pm-e-baseada-em-abusos-dizem-policiais/
(3)https://www.diariodocentrodomundo.com.br/bolsonaro-quer-dar-a-policia-o-que-ela-ja-tem-licenca-para-matar-por-mauro-donato/
(4)https://exame.abril.com.br/brasil/policia-brasileira-e-a-que-mais-mata-no-mundo-diz-relatorio/
(5)https://oglobo.globo.com/rio/autos-de-resistencia-provocam-aumento-de-mortes-violentas-no-estado-indice-o-maior-desde-2009-22894322
(6)https://portal.fgv.br/noticias/icjbrasil-2017-confianca-populacao-instituicoes-cai
(7)https://m-folha-uol-com-br.cdn.ampproject.org/v/s/m.folha.uol.com.br/amp/cotidiano/2017/07/1897905-1-a-cada-3-brasileiros-tem-medo-de-violencia-e-da-policia-aponta-pesquisa.shtml?amp_js_v=a2&_gsa=1&usqp=mq331AQCCAE=#referrer=https%3A%2F%2Fwww.google.com&_tf=Fonte%3A%20%251%24s
(8)https://g1-globo-com.cdn.ampproject.org/v/s/g1.globo.com/google/amp/rj/rio-de-janeiro/noticia/maioria-continua-apoiando-intervencao-no-rio-mas-nao-percebe-melhora-na-seguranca-diz-pesquisa-datafolha.ghtml?amp_js_v=a2&_gsa=1&usqp=mq331AQCCAE%3D#referrer=https%3A%2F%2Fwww.google.com&_tf=Fonte%3A%20%251%24s&share=https%3A%2F%2Fg1.globo.com%2Frj%2Frio-de-janeiro%2Fnoticia%2Fmaioria-continua-apoiando-intervencao-no-rio-mas-nao-percebe-melhora-na-seguranca-diz-pesquisa-datafolha.ghtml
(9)ALVES, J. Cláudio Souza. Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense. Duque de Caxias: APPH, CLIO, 2003. p. 174.
(10)BRETAS, M. Ordem na cidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 62.
Nossa sucursal em Brasília já está em ação. A Fórum é o primeiro veículo a contratar jornalistas a partir de financiamento coletivo. E para continuar o trabalho precisamos do seu apoio. Saiba mais.