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OPINIÃO
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Infelizmente, o debate sobre a criminalização dos crimes de ódio contra as LGBT chega com quase 20 anos de atraso ao Supremo Tribunal Federal (STF). Os motivos são vários: completa inanição do Congresso Nacional, má vontade generalizada da esquerda para com a questão e equívocos sistemáticos dos governos do PT. Além do mais, a própria mentalidade de parte do movimento LGBT mudou quanto à eficácia da criminalização da homofobia.
Mas vamos por parte: O PL da homofobia foi apresentado em 2001 pela então deputada federal Iara Bernardi (PT-SP), passando a tramitar na Câmara dos Deputados a partir de 2003. Em 2006, ele foi aprovado na Câmara e rumou ao Senado, onde passou a ser chamado de PLC 122/06. À época ganhou relatoria e defesa pública da então senadora Fátima Cleide (PT-RO) e, a partir de sua tramitação, foi gestado no Congresso Nacional aquilo que ficou conhecido como “guerra santa”, pois, a então neófita extrema direita, que já fazia parte da base de apoio do governo petista, mobilizou a sua base para contaminar com mentiras o PL.
Aliás, a trajetória do PLC 122/06 é, digamos, a origem da fake news como arma política da extrema direita. Foi a partir desta guerra travada que figuras como Magno Malta (PR-SC), então senador, e Marco Feliciano (PODEMOS) construíram os seus respectivos palcos para criar toda uma narrativa de ódio e mentiras sobre o debate dos crimes contra as LGBT. A principal mentira é que a lei feria a liberdade de expressão, quando, na verdade, ela legislava sobre o discurso de ódio nos meios de comunicação, ou seja, estes senhores temiam ser enquadrados na lei, caso fizessem discursos contra as vidas LGBT na TV, rádio e internet; ódio: tanto Magno Malta quanto Feliciano, sempre que discursavam contra o projeto em questão, relacionavam a homossexualidade com pedofilia e necrofilia. Há vídeos à exaustão na internet sobre.
Neste contexto, e estamos falando de um período onde o governo do PT contava com forte apoio popular, a bancada do partido, com algumas exceções – Maria do Rosário (RS) e Erika Kokay (DF) – nunca defendeu de fato o PL e sempre que pode realizou acordos com a extrema direita fundamentalista. Ou seja, calava-se diante do PLC 122/06 para obter votos em outras pautas e, claro, apoios políticos em eleições locais. Porém, no meio desta guerra foi realizada, em 2008, a I Conferência Nacional LGBT que contou com a presença do ex-presidente Lula em sua abertura e onde o próprio relatou aos presentes – eu estava lá cobrindo – que tomou a decisão – de abrir o evento – contrariando a direção de seu partido e conclamou que era preciso dar um fim à hipocrisia e legislar a favor das vidas LGBT. Não à toa, Lula é até hoje maior que o Partido dos Trabalhadores.
Outro momento enfraqueceria ainda mais a luta legislativa à criminalização da homofobia: em 2011, quando, mais uma vez, o governo do PT, desta vez tendo a presidenta Dilma enquanto representante, mandou engavetar o projeto “Escola sem Homofobia”, após um lobby liderado pelo então deputado federal Anthony Garotinho, que mandou o recado direto da tribuna: ou engaveta ou convocamos Palocci para depor. O projeto foi engavetado e o Palocci convocado. Cabe ainda ressaltar que é no meio deste quiproquó que Jair Bolsonaro (PSC), hoje presidente do Brasil, também ganhou palanque e inúmeras vezes declarou que “não existia homofobia”.
Além de tudo isso, a Parada do Orgulho LGBT da cidade de São Paulo, que é a maior do mundo, por mais de uma vez pautou a questão dos crimes contra as LGBT e a necessidade de sua criminalização. E, mesmo atraindo milhões de pessoas e imprensa do mundo inteiro, é desde sempre solenemente ignorada por quase toda a esquerda brasileira que se fez e se faz presente no Congresso Nacional.
No mais, em 2014, numa articulação da extrema direita, o PLC 122/06 foi definitivamente enterrado no Senado.
A conjuntura mudou
Outro fato que temos que levar em consideração é que a conjuntura política mudou profundamente. Como disse no início deste texto, parte da mentalidade do movimento social mudou, tanto no que diz respeito às mentalidades quanto na idade: as teses do desencarceramento avançaram e daí fica a questão: supondo que a homofobia se torne crime, quem será o encarcerado? A dureza penal vai realmente diminuir os crimes de ódio contra as LGBT? Peguemos como exemplo o caso das mulheres: hoje temos a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio. Os bárbaros crimes contra as mulheres diminuíram? A resposta é óbvia.
A luta política que deve ser travada neste momento e daqui para frente passa por políticas públicas sobre gênero, sexualidade e raça nas escolas, pois, trata-se de construir uma nova mentalidade para que estes crimes contra a diferença e os corpos dissidentes diminuíam e, quem sabe, um dia desapareçam. E aqui entramos em mais uma postura equivocada da esquerda: durante as eleições de 2018 e com os massivos ataques da campanha do atual presidente de que o PT pretendia doutrinar os jovens e obrigá-los a mudar de orientação sexual nas escolas, a resposta foi amorfa, quase um pedido de desculpas. Mesmo com a imprensa tradicional desmentindo tudo que era dito pelo então candidato, a “mamadeira de piroca” que era distribuída nas escolas se tornou o fato concreto e a campanha petista não teve a audácia de partir pra cima. No final, prevaleceu a mentira e a barbárie.
Uma nova postura à esquerda
O fato é que não adianta chorar o leite derramado. É importante que o STF discuta os crimes de ódio contra as LGBT? Claro, pois, traz a pauta para toda a imprensa, tem o fator pedagógico, tira do armário as figuras odiosas e resgata as mentiras em torno da criminalização da homofobia. Por exemplo, a deputada federal Joice Hasselmann (PSL-SP) gravou um vídeo onde resgata as clássicas mentiras e ainda afirma que a “criminalização da homofobia” é algo subjetivo e que envolve as “liberdades religiosas”. Ora, que liberdade é essa: discursar contra modos de vida com a qual determinada religião não concorda? Até a liberdade de expressão tem limites. Mas o vídeo tem milhares de visualizações.
E aqui deixo outra provocação: por que a presidenta do PT, Gleisi Hoffmann, não gravou um vídeo contundente defendendo a questão, desmentindo as coisas ditas pela referida deputada do PSL? Apenas postar memes e “tuitaços” não serve. Mais: por que outras lideranças da esquerda não utilizam suas redes, com o mesmo peso que a extrema direita utiliza para atacar as LGBT, para defender e atacar os crimes de ódio contra as lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais? Neste vácuo, quem ocupa (e tem ocupado) e tem imposto a narrativa sobre as LGBT tem sido a extrema direita sobre uma questão que ninguém deveria ter dúvidas: que atos de ódio contra as LGBT são deploráveis.
Por fim e diante da atual conjuntura, qualquer que seja o resultado do julgamento STF ele será inócuo, pois, por mais que estabeleça um prazo para a Câmara dos Deputados – e aqui temos a problemática da ingerência de poderes – se pronunciar e fazer algo diante dos crimes de ódio contra as LGBT, nada vai acontecer diante do atual quadro político-legislativo vigente no Brasil.
No mais, é sempre bom lembrar a quem serve o Estado e o judiciário. Aos corpos e vidas dissidentes é que não.
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