Dentro da guerra simbólica, a libertação de Lula foi semioticamente perfeita: refez de maneira inversa o trajeto que o levou à prisão do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo a Curitiba no ano passado. Mas enquanto Lula falava para os convertidos, a grande mídia começou a contra-atacar para a maioria silenciosa, no seu habitual modo alarme: analistas começaram a alertar para os perigos da “radicalização” e “polarização” que representa a volta de Lula ao jogo. Está no início a criação de uma cilada simbólica que o semiólogo francês Roland Barthes chamava de “mitologia da crítica Nem-nem” ou “ninismo”. Colocar Bolsonaro e Lula num mecanismo de dupla exclusão – reduzir a realidade histórica a uma polaridade simples, quantificar o qualitativo em uma dualidade e equilibrar um com o outro, de modo a rejeitar os dois. Qualificar ambos através de palavras com culpabilidade prévia. Mas também está em início uma revolução semântica nos telejornais para despolitizar a política, preparando a chegada da conclusão do silogismo “Nem-nem”, depois que as premissas Bolsonaro e Lula mutuamente se excluírem: o paradigma Luciano Huck.
Lula está livre. Não sem antes o presidente do STF, Dias Toffoli, entrar na saia justa do voto de Minerva, dando a ressalva de que o Congresso Nacional poderia voltar a deliberar sobre o assunto (prisão em condenação de segunda instância) sem ofender a Constituição... Será que Lula poderá voltar para a prisão?
Toffoli propositalmente deixou em suspense para incendiar a imaginação das camisetas verde-amarelas.
Quando foi preso no ano passado, este humilde blogueiro argumentou que a entrega de Lula aos cárceres de Curitiba foi sob um preço semiótico muito baixo para seus algozes: ao invés de se valer da estratégia do empate (encastelar-se no sindicato dos Metalúrgicos do ABC e vender sua inevitável prisão a um custo simbólico muito alto), Lula se entregou não só para a PF, mas também para a grade horária da Globo cujo ápice foi a decolagem do prisioneiro em Congonhas para Curitiba, em pleno no Jornal Nacional. Com um Chico Pinheiros com a voz embargada dando a notícia em rede nacional –
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Mas dessa vez, o seu retorno foi semioticamente perfeito: refez, de trás para frente, o caminho que o levou à prisão em 07/04/2018 – saiu caminhando do prédio da PF de Curitiba, fez um discurso na Vigília Lula Livre e (não existe coincidência em política) voltou para São Paulo em um jato de propriedade de Luciano Huck e que pertence à frota da Icon Taxi Aéreo.
Huck já é incensado como um dos candidatos à presidência para 2022, criando outra saia justa, dessa vez para o apresentador – Huck teve que fazer uma ginástica retórica para se explicar nas redes sociais que nada tinha a ver com a “gentileza”.
O gancho semiótico do helicóptero
Em São Bernardo, Lula escolheu fazer seu primeiro discurso oficial em frente ao Sindicato, num palanque, num mesmo sábado igual ao do ano passado, diante de uma massa inflamada naquela mesma rua estreita.
Um helicóptero da Globo sobrevoava o local, e Lula aproveitou o momento para aproveitar o gancho semiótico e produzir uma alegoria: a da poderosa emissora monopolista que sobrevoa “para falar merda de novo do Lula”.
Depois, foi levado pelos braços do povo. Dessa vez, para dentro do Sindicato, o mesmo de onde saiu para a prisão em 2018.
Até aqui tudo bem. Um discurso para a militância.
A questão é que enquanto Lula falava para convertidos, a grande mídia já bombardeava para a maioria silenciosa uma narrativa da qual tirasse algum proveito simbólico depois da invertida que tomou do STF: “Lula livre representa um risco, porque o País não precisa de radicalizações e polarizações, justamente nesse momento em que as reformas farão a economia crescer e o emprego voltar...”, começou a entabular em quase uníssono colunistas, analistas e “informações de pauta” dos telejornais.
O discurso de reposicionamento da grande mídia ficou cristalizado no quadro do Fantástico “Isso a Globo Não Mostra” desse último domingo: “Afinal, de que lado ela está?”, perguntava a atriz Lilia Cabral depois de serem mostradas imagens de arquivo de Bolsonaro e Lula atacando a Globo, exibindo no mesmo segmento o personagem de Marcelo Adnet “militante revoltado”, um histérico e estereotipado esquerdista sempre acusando a emissora de manipuladora.
A mitologia “Nem-nem”
Se estivesse vivo, o semiólogo francês Roland Barthes (1915-1980) certamente encontraria nessa estratégia semiótica midiática uma confirmação de uma mitologia retórica que ele próprio definiu como “crítica Nem-nem” ou simplesmente “ninismo”.
Em seu célebre livro
Mitologias de 1957 o pesquisador francês empreendeu uma verdadeira engenharia reversa da retórica dos meios de comunicação de massa, cristalizada no que chamou de “mitologias”- forma de fala que não nega uma realidade, mas a torna inocente, despolitizada, ao esconder as conotações (as saturações ou canastrice das significações) dando-lhes um significado natural, eterno, imobilizando o mundo ao retirar dele a História e a contingência.
A crítica nem-nem decorre de um mecanismo de dupla exclusão – reduz a realidade histórica a uma polaridade simples, quantifica o qualitativo em uma dualidade e equilibra um com o outro, de modo a rejeitar os dois.
Segundo Barthes, é a Justiça como uma operação de pesagem. E a balança só pode confrontar o mesmo com o mesmo. De uma maneira mágica, foge-se de uma realidade intolerável (porque múltipla, contingencial, histórica), reduzindo-a a dois contrários para depois serem pesados e rejeitados.
No campo semiótico da sociedade, nesse momento a grande mídia tenta agendar essa mitologia (no sentido dado por Barthes) “Nem-Nem” sob o termo “polarização”. E como em toda construção de um discurso mitológico, o propósito é exorcizar da cena pública de debates a História e a contingência.
Mas não apenas isso. A retórica do “nem-nem” busca na verdade excluir os contrários para tentar mostrar que ambos são iguais e simétricos na suposta radicalidade, e que a única solução é o “bom senso” – mito burguês no qual se baseia a forma moderna de liberalismo. A Justiça como uma operação de pesagem.
Dissimular a contingência histórica
Mas qual contingência histórica está sendo dissimulada nesse bom senso promovido pela mitologia do ninismo? Quem dá a pista é o cientista político Vitor Marchetti, professor da Universidade Federal do ABC:
A gente não vive uma
polarização efetivamente, mas vive de um lado um projeto político que se coloca e que tem muita dificuldade em conviver com o ambiente democrático e todos os protocolos que o sistema democrático pressupõe”, afirma Marchetti. “Na realidade, a radicalização que existe hoje no país nem é consequência da polarização, mas da existência de um grupo político que é um grupo de direita que chegou ao Palácio do Planalto e não pactua com as regras democráticas. Ou seja, a
polarização não é o problema, mas a radicalização da existência desse grupo que não pactua com as regras da democracia. (Rede Brasil Atual –
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Para a grande mídia a guerra híbrida brasileira (na qual mergulhou de cabeça como verdadeiro partido de oposição) trouxe duas consequências inesperadas: primeiro, a perda do controle do jogo da polarização que ela própria incitou – a polarização PT-PSDB, desde o momento que Aécio Neves não aceitou a derrota em 2014 e o PSDB questionou os resultados e a confiabilidade das urnas.
Convertida em partido de oposição, a grande mídia açodou todo submundo do “Brasil Profundo” (ódio, racismo, preconceito etc.) que encontrou a sua expressão política perfeita no atual governo miliciano de extrema-direita. Perdido o controle, ao jornalismo corporativo passou a semioticamente naturalizar um governo que, afinal, punha em prática a agenda neoliberal defendido pela banca e mídia rentista.
E segundo, a volta de Lula ao jogo político. Sem mais o que fazer a respeito (porque sabem que, com base nos elementos objetivos do direito brasileiro – princípio de anterioridade, prescrição etc. – Lula jamais será preso outra vez), incontinente a mídia corporativa colocou em ação a retórica do “ninismo”. Para quê? Para reavivar a alternativa do “bom moço”, o apresentador global Luciano Huck.
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*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.