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OPINIÃO
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Na recente retomada da série em quadrinhos Invaders pela Marvel, o personagem Namor, herdeiro de Atlântida, articula um plano em defesa da vida marinha que o leva a acionar uma arma biológica contra o povo “da superfície”. Este não é o primeiro gesto de terrorismo ambientalista de Namor, que às vezes aparece como um herói hesitante, um anti-herói ou um vilão propriamente dito.
Na oposição do mar com a superfície, Namor está sempre pronto para assumir seu lugar junto à Atlântida. Não é tão raro esse tipo de vinculação ambientalista dos heróis e vilões dos quadrinhos das duas grandes editoras (Marvel e DC); e são frequentemente os vilões que assumem nesse sentido uma posição “radicalizada”. Na DC, o principal exemplo é sem dúvida o da Hera Venenosa, mas isso é reiterado também em Ra’s Al-Ghul e na neutralidade desumanizada (ou seja, em favor da natureza não humana) do Monstro do Pântano.
Esses personagens (vilanescos ou, no mínimo, moralmente ambíguos) aparecem como desenhando uma inquietante fronteira entre o humano e o não humano, e sua posição de declarada aliança ao segundo sinaliza primeiramente um aspecto de desumanidade. Em oposição a essa fronteira está a possibilidade de um convívio harmônico que buscam heróis como Aquaman e a Mulher-Maravilha. Esse tipo de conflito não é muito diferente da oposição entre humanos e mutantes nas histórias de X-men, em que um personagem como Magneto aparece como uma alternativa violenta e radical ao “sonho” pacifista do Professor Xavier. É uma questão semelhante para que os quadrinhos costumam recorrer a soluções semelhantes. Aí chegamos a House of X e Powers of X.
Por que preciso fazer essa digressão por entre exemplos da relação dos quadrinhos de super-herói com os discursos ambientalistas antes de chegar nessas duas séries complementares escritas por Jonathan Hickman e com arte de Pepe Larraz? A resposta está na própria releitura dos X-men, da sua mitologia interna e dos seus personagens, que é feita pelos autores dessas duas revistas.
O universo dos X-men é comumente definido em termos bastante simples: a humanidade evolui em direção a uma nova espécie, os mutantes, uma minoria que é então rejeitada pela humanidade como um “outro” perigoso, que coloca o ser humano em risco. Quando Chris Claremont se apropriou dos personagens em 1976, ele recria esse universo em consonância com os discursos antirracistas estadunidenses. Mais tarde, ao ser adaptado para o cinema, o “outro” mutante passa a aparecer mais frequentemente como uma metáfora para sexualidades e identidades de gênero não normativas (1).
Mas há algo na própria simplicidade dessa mitologia que interrompe leituras mais complexas que a associam aos problemas de identidade (de gênero, sexualidade ou raça): a aparição dos mutantes como uma evolução do humano. O que isso quer dizer, exatamente? Quão normativa e eugenista é essa ideia de evolução? O quanto ela reitera discursos que celebram um destino definido pela biologia e pela genética? E, enfim, se o mutante para o humano é um outro, o que ele é para a natureza em tempos de crise ambiental?
Se sujeitos não humanos não são personagens estranhos para as narrativas de ficção científica, a ideia de “natureza” é frequentemente um problema para esse gênero midiático. A que futurismos interessa um discurso sobre a natureza? No universo de super-humanos e máquinas sofisticadas, a natureza não humana surge como um apego anacrônico de sociopatas (Namor e Hera Venenosa) ou personagens que vivem fora de seu próprio tempo (Mulher-Maravilha e Ra’s Al-Ghul).
O mutante, no entanto, aparece nesse sentido como o futuro da natureza. O mundo mutante não deixa de ser um tipo de utopia ambientalista: em meio à catástrofe das sociedades contemporâneas, a natureza se refaz, “evolui”, e a vida natural continua, apesar de tudo.
House of X e Powers of X colocam em cena esses dois problemas: um da vinculação dos mutantes a uma natureza não humana e outro de se tomar o corpo mutante como um corpo evoluído a partir da diferença biológica e genética. A história fala de uma nova utopia mutante: uma adaptação da ilha de Krakoa (uma ilha que é, ela mesma, uma mutante) que possa servir como habitação para todos os mutantes do mundo. Essa adaptação se dá por uma hibridização de Krakoa com a máquina Cérebro, que, acionada por um telepata poderoso, alcança uma capacidade de quase onipresença. Krakoa logo se torna uma pauta disputada entre humanos e mutantes: pode essa ilha sem uma localização geográfica precisa ser reconhecida como nação e servir de asilo para todo tipo de mutante do mundo? Que corpos são esses, corpos-mutantes, que habitam Krakoa?
House of X e Powers of X acionam uma associação antiga dos quadrinhos de super-herói entre a desumanização e a radicalidade. Krakoa, como o lugar novo do não humano, é o gesto final de radicalização da causa mutante. Diante de Krakoa, tanto o sonho pacífico de Xavier quanto a iniciativa armada de Magneto parecem incapazes de alcançar as novas possibilidades do corpo mutante, possibilidades que não retiram esse corpo mutante da natureza, mas o apresentam como uma outra natureza – a natureza e o corpo além do humano.
Em Krakoa, o corpo-mutante deixa de ser o corpo da evolução humana para reivindicar a si mesmo como um “outro” da humanidade – deixa o pós-humano pelo não humano. Não é por acaso que Krakoa, esse corpo-mutante-ilha, seja a habitação dessa diferença. Krakoa é duas vezes não humana, sua vida “interna” é então duas vezes inquietante para o humanismo. E, quando reivindicada como um lugar político soberano, Krakoa desestabiliza a distribuição de forças desse mesmo humanismo.
Como utopia, Krakoa é o lar abundante do outro não humano. Quando lemos House of X e Powers of X, somos convidados a imaginar essa utopia que não nos inclui. Essa reconfiguração das imagens e dos discursos sobre o ambientalismo – em relação ao que é mais típico nos quadrinhos de super-herói – sugere uma nova radicalidade sensível nas HQs dos X-men.
Não é à toa que House of X e Powers of X são seguidas por uma nova revista X-men, com seu “X” novamente ressignificado. Com todas as suas irregularidades e problemas, afinal, as séries dos X-men, nos quadrinhos, na televisão ou no cinema, mantiveram-se sempre como uma possibilidade de usar a conhecida narrativa dos super-heróis como artifício para uma reimaginação política e sensível do nosso lugar no mundo – uma imaginação assim inquieta, insatisfeita e desestabilizadora. Fico feliz de testemunhar esse novo ponto de mudança e torço para que as apropriações futuras desse universo e personagens saibam redescobrir no seu “X” outras indeterminações do sujeito.
(1)O canal de YouTube Ora Thiago faz um resgate interessante dessas diferentes metáforas possíveis para o universo dos X-men no vídeo “Todos os X-men são gays”.