Becos da Memória - A força da memória para pensar o passado e o presente

Joselicio Junior: A riqueza do texto está na importância dada a cada trajetória dos personagens, os espírito de comunidade, o papel das matriarcas no equilíbrio comunitário, a presença do afeto, da empatia, o que nos permite um olhar muito mais profundo sobre o passado, nos conectando diretamente com o presente.

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Dois livros me marcaram profundamente. O  primeiro li há uns 10 anos atrás, presente do meu amigo professor de Filosofia Chico Nunes,  “Quarto de Despejo” de Carolina Maria de Jesus. Tive que interromper diversas vezes a leitura diante da emoção latente e dilacerante, uma realidade nua e crua, cercada pela fome, pelo racismo, machismo e tantas outras violações que nos fazem entender aquele momento relatado e conectá-lo diretamente com o presente, mas ao mesmo tempo mostra a força e a grandeza de quem luta cotidianamente pela sobrevivência, na busca de melhorar a sua condição.

Passado todo esse tempo me deparo novamente com uma literatura que me impacta, que me faz mergulhar, me emocionar, que você fica ansioso para pegar o livro novamente e continuar lendo, que você devora, fica sem fôlego ao término  de cada passagem. Esse livro foi “Becos da Memória” de Conceição Evaristo. Como a autora afirma na introdução, o livro foi construído a partir da escrevivência, uma mistura das memória da infância, com ficção, mas retratando o contexto de uma favela nos final dos anos 60. Como também afirma Evaristo, são relatos daquele tempo, de uma favela daquele tempo, hoje seriam outras memórias, mas digo, não tem como  não enxergar semelhanças, conexões e até mesmo as consequências do passado no presente.

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A estrutura narrativa nos remete a memórias do contexto vivido em uma favela nos anos 60 e também nos leva a histórias ainda mais longínquas como do tempo da escravização. A história oficial quase sempre nos é contada a partir da lógica dos vencedores, da elite, dos mandatários, dos patriarcas, colonizadores.  Becos da Memória nos permite, através da memória, nos trazer uma outra ótica do passado, construída por mulheres negras, por retirantes filhos de escravizados. Relatos que trazem a dureza e o sofrimento de quem lutou para se libertar, de quem migrou do campo para a cidade e formou comunidades com moradias precárias, sem infraestrutura e que simplesmente eram removidos, basicamente sem direitos,  a partir da força do capital, dificuldades financeiras, restrições sociais, o alcoolismo muitas vezes como válvula de escape para amortizar o sofrimento, o machismo e a violência doméstica, luta por direitos e até mesmo os amores. Mas, sobretudo, a riqueza do texto está na importância dada a cada trajetória dos personagens, os espírito de comunidade, o papel das matriarcas no equilíbrio comunitário, a presença do afeto, da empatia, o que nos permite um olhar muito mais profundo sobre o passado, nos conectando diretamente com o presente.

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Lembro que durante a leitura do livro, assisti uma reportagem na televisão sobre um despejo que estava sendo realizado na zona leste da capital paulista e alguns relatos me chamaram muita  atenção. Um deles foi de um jovem que dizia que sua sogra morava naquele local há mais de 40 anos, onde constituiu sua família, suas relações sociais e de amizade e quanto era cruel aquela retirada brusca sem perspectivas para os removidos e sem nenhum respeito ao que construíram naquele local, independente das condições precárias em viviam. Fiquei profundamente tocado, reflexivo, traçando paralelos com os relatos do livro e analisando como muita coisa ainda não mudou.

Sempre gostei muito de passar horas conversando com a minha avó, que nos deixou há dois anos. Ficava encantado com suas histórias de infância rural na caatinga da região sudoeste baiana, onde descobri a ligação direta da minha família com comunidades indígenas. Quando conto essa história lembro imediatamente da música “Cafuzo” de Pereira da Viola: “Misturaram pretos e índios/ E dali nasceu minha avó / Eu vivia meio confuso/ Sem saber o porque do arrepio/ Ao bater o tambor/ Mas agora eu sou cafuzo…”. Ler o texto de Conceição Evaristo é como se você estivesse ouvindo as memórias de minha avó. No último encontro que tive com o Mestre Lumunba, no espaço Afrobase, ele me chamou a atenção sobre o debate da oralidade, o quanto é uma caixinha colonizadora dizer que a cultura oral é algo típico africano, afirmando que se a oralidade não fosse importante não precisa, por exemplo, ter professor para traduzir, interpretar e ensinar o que está escrito, portanto a transmissão do conhecimento em boa parte da construção histórica depende da oralidade. Isso vale para os 4 cantos do planeta.

Becos da Memória traz a força da oralidade, uma junção entre histórias do passado contadas pelos mais velhos e a observação atenta de uma adolescente na sua busca por uma identidade e seu lugar no mundo. Para quem deseja conhecer um pouco da construção histórica brasileira a partir do olhar da base, essa leitura é imprescindível.

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