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OPINIÃO
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Marco do expressionismo alemão, o filme O Gabinete do Dr. Caligari (1919) foi premonitório ao tratar dos temas do mal e da hipnose – foi como se os maus augúrios dos acontecimentos entre-guerras tivessem sido soprados nos ouvidos do diretor Robert Wiene: avisos da futura tirania e da influência das massas através do hipnotismo que culminariam no nazismo e no Holocausto.
Filmes como esse de Wiene comprovam que em determinadas circunstâncias o cinema se torna uma espécie de sismógrafo do inconsciente coletivo – um filme pode conter metáforas, alegorias ou temas que figurem tendências futuras em germe.
Principalmente nos gêneros do horror e do fantástico: livres das necessidades da representação realista e da verossimilhança, podem explorar mais facilmente o imaginário de uma sociedade em, por assim dizer, tempo real.
A coprodução Brasil-França As Boas Maneiras (2017), da dupla de diretores e roteiristas brasileiros Juliana Rojas e Marco Dutra pode ser considerado o “Dr. Caligari” do atual momento do da psicologia coletiva brasileira. Combinando uma afiada crítica social com elementos do cinema de gênero do horror e fantástico consegue injetar sangue novo na tradicional estória de lobisomens.
Partindo de uma realidade bem brasileira (as relações invisíveis de segregação por trás da realidade das empregadas domésticas) As Boas Maneiras mostra não apenas a permanência das relações escravistas entre a Casa Grande e a Senzala na sociedade urbana brasileira – insere nessa realidade a velha mitologia do lobisomem combinada com religiosidade.
Em 2011 na estreia em longas com a produção Trabalhar Cansa, a dupla já havia visitado um outro aspecto da realidade brasileira: a precarização da vida da classe média que, para sobreviver psiquicamente, se agarra simultaneamente aos valores meritocráticos e na irracionalidade da autoajuda, misticismo e astrologia. E como o sobrenatural vai entrando no cotidiano de uma classe social alienada.
Quando assistimos As Boas Maneiras é inevitável a comparação com outro filme brasileiro recente sobre o cotidiano da segregação das empregadas domésticas: o filme Que Horas Ela Volta? (2015) de Anna Muylaert. São dois gêneros diferentes (de um lado o drama social e do outro o realismo fantástico) e dois momentos da realidade brasileira distintos – em 2015, a estória otimista da filha de uma empregada doméstica determinada a passar na Fuvest e romper com os limites de uma cultura de segregação social; e em 2017, o contrário: o pessimista quadro da permanência da ordem escravocrata na moderna sociedade urbana brasileira.
Mas é exatamente essa diferença que revela como esses dois filmes são reflexos de distintos momentos da realidade brasileira recente: Em Que Horas Ela Volta?, a fé na revolução brasileira com uma crítica social forte e contundente; e em As Boas Maneiras, um quadro pessimista de imobilidade e derrota – não só desigualdade e segregação permaneceram intactas: também o mal estar coletivo cresceu e o Mal surge das entranhas do ressentimento. Um lobisomem à solta entre o bairro de elite do Brooklin, em São Paulo, e o bairro pobre e periférico Capão Redondo – a melhor metáfora para a crise social brasileira.
O Filme
As Boas Maneiras é construído em uma narrativa baseada em polaridades. A primeira é de classe social. Ana (Marjorie Estiano) é uma filha de pais abastados do interior que está à espera de um filho, fruto de uma transa casual. Com as relações familiares estremecidas, Ana saiu de casa e mora sozinha em um apartamento duplex no bairro nobre do Brooklin, próximo à ponte estaiada, em São Paulo – a famosa ponte estaiada, cartão postal da cidade, é um elemento simbólico para nossa análise.
O filme inicia com Ana à procura de uma empregada doméstica que também faça as vezes de babá quando o filho nascer. Clara (Isabél Zuaa) é a última candidata entrevistada por Ana: desempregada e com um providencial curso de enfermagem, mora no bairro periférico do Capão Redondo, às voltas com o aluguel atrasado de uma pequena edícula da casa de Dona Amélia (Cida Moreira), uma devota católica.
Ana é rica, branca. Enquanto Clara é pobre e negra. Ana é expansiva, com traços de personalidade de uma vida de menina mimada de uma rica fazenda. E Clara, calada e com um olhar desconfiado de alguém que sofreu muito na vida.
Aos poucos a gravidez de Ana começa a apresentar anomalias: em noites de lua cheia, vira sonâmbula. E às vezes em seus distúrbios noturnos torna-se agressiva, chegando até a arranhar Clara.
Também aos poucos a óbvia tensão de classes vai se diluindo com o envolvimento sentimental iniciado pela patroa e pela correspondência de Clara. O laço afetivo e sexual cresce, ao mesmo tempo que aumentam as preocupações: há algo de estranho naquela gravidez – o feto cresce acima da média e os movimentos na barriga de Ana são intensos e inquietantes. Principalmente na Lua cheia.
“Bonito olho de bicho!”
Essa é a porção social da primeira parte da narrativa que prepara para a segunda metade que introduzirá o espectador nas convenções do cinema do horror e do fantástico. Uma fala de Ana, reveladora da sua antiga vida na fazenda da família no interior, é o prenúncio do que virá: “eu acho bonito olho de bicho”, diz ao olhar a foto dela posando ao lado de um cavalo.
O nascimento de Joel (Miguel Lobo) põe fim à relação entre as duas de forma perturbadora. Cena na qual percebemos o lado francês da produção: duas empresas francesas de efeitos visuais – uma que fez o bebê e a barriga, e a outra responsável pelos efeitos em CGI.
O bebê lobo banhado em sangue, liberto do corpo de Ana em um plano em que se encontra envolto com o cordão umbilical no pescoço com a lua ao fundo na janela é o mergulho do filme no gênero horror e a irrupção do sobrenatural na vida de Clara.
Que arrastará até o fim do filme: ser a nova mãe de Joel, tentar fazê-lo levar uma vida normal e esconder da sociedade o terrível segredo: nas luas cheias, Clara deve prender o menino em um quarto especialmente construído para prendê-lo. Até a Lua passar.
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