(Saudade de 1968, tempo de lutas por liberdade e igualdade. “É proibido proibir!” foi lema dos estudantes franceses e título de uma canção de Caetano Veloso num festival do mesmo ano)
Aconteceu nos Estados Unidos há não muitos dias... Uma moça usou um vestido típico chinês numa festa de formatura e foi “crucificada” nas redes sociais, como se fosse uma usurpadora, uma criminosa que não tinha o direito de usar uma roupa típica de um povo a que não pertence.
Falar que o mundo anda muito esquisito não é novidade. Faz um bom tempo que atitudes estranhas vão se tornando cada dia mais comuns.
Atitudes imbecis como essas, a gente poderia dizer uns tempos atrás, são típicas do país que atualmente poderia se chamar Trumpistão, mas acontecem aqui também.
Aliás, coisas que só aconteciam lá, como um sujeito entrar numa escola dando tiros, já chegaram aqui.
Há uns tempos uma moça quase foi linchada por usar cabelo afro ou rastafári, não me lembro bem. Era branca. Por isso, diziam, não tinha o direito de usar um penteado típico de povos que não são o seu. Desde os tempos do jornal Versus (1975 e uns anos mais), tenho ligação com movimentos negros, apoio a causa com veemência e, se tivesse cabelo suficiente, provavelmente usaria um penteado típico dos negros, como forma de identificação com esses movimentos. Mas hoje, correria o risco de ser ameaçado como apropriador de uma coisa que não me pertence. Certo, não é todo mundo que faz isso: muitos e muitos negros (ou afrodescendentes, como preferem alguns) interpretam essa coisa de querermos ser iguais a eles como positiva, uma forma de identificação com a causa.
Por sinal, em algumas circunstâncias, eu me apresento como eurodescente de coração cafuso. Sou muito mais ligado a questões indígenas e afrodescendentes do que das de origem europeia.
Por falar nisso, uma cantora amazonense, de origem indígena, falou em proibir que foliões se vestissem de índios no carnaval.
Índios... indígenas. Está aí outra coisa que tem gerado polêmica. O Ohi e eu escrevemos há alguns anos um livro tentando transmitir um pouco da cultura tupi para crianças e propusemos o nome de “Palavra de Índio”. Para publicar o livro, a Editora Melhoramentos pediu mudança no nome. “Índio” era uma palavra inaceitável, dada por imperialistas espanhóis e portugueses, que chamavam a atual América de “Índias Ocidentais”, segundo um consultor da editora – indígena, por sinal. Mas a palavra indígena não tem a mesma origem? Não adiantava argumentar. Só que se colocássemos o título “Palavra de Indígena” ficaria muito sem graça. Acabamos publicando com o título “Paca, tatu, cutia... Glossário ilustrado de Tupi”.
Depois disso, procurei uns livros infantis de um indígena que não admitia que usássemos o termo “índio” e nos livros dele a palavra usada era índio mesmo, e não indígena.
Proibições esperadas
Diante dessa coisa estranha de proibir que alguém use ou faça coisas típicas de uma cultura de um determinado povo ou grupo social a que não pertence, andei pensando numas coisas que podem muito bem serem proibidas.
- Começo pela “fila indiana”. Trilhas por onde passavam grupos de índios (ou indígenas) na mata eram estreitas, suficientes para a passagem só de uma pessoa. Então, iam andando ou correndo um atrás do outro, e daí surgiu a expressão “fila indiana”. Por isso, fazer “fila indiana” deve ser proibido a povos não indígenas.
- Gravata é um adorno que acho muito besta, mas muita gente gosta. Essa palavra é resultado da deturpação do topônimo “croata”, quer dizer, alguém nascido na Croácia. No século XVII muitos croatas foram contratados pelo exército francês, como mercenários. Esses croatas usavam um lenço pendurado no pescoço e isso caiu no gosto dos franceses, que deram a esse adorno o nome “cravate”... Bom. Os croatas de hoje podem rememorar isso e reivindicar: só croatas podem usar gravata.
- Sandália franciscana – tá aí uma coisa que gosto de usar, embora esteja um tanto fora de moda. Mas de repente posso ser cercado na rua por um sujeito vestido com trajes franciscanos e ele me mandar tirar esse calçado, já que não sou franciscano.
- Neymar, quando se revelou no futebol, usava cabelo moicano e teve um monte de seguidores. Ainda bem, para ele, que “O último dos moicanos” morreu há muito tempo.
- Chapéu texano – nos rodeios e nos shows de cantores do gênero sertanejo universitário, são abundantes. Devem ser proibidos, não?
Para não estender muito, a feijoada é típica do Rio de Janeiro – será que poderá ser servida em restaurantes não cariocas?
Churrascaria gaúcha fora do Rio Grande do Sul – isso pode?
Cristo Redentor em um monte de cidades, imitando o do Rio – pode também?
Escola de samba – tá aí outra coisa que os cariocas podem querer proibir no carnaval de muitas cidades imitadoras.
Fascistas fora da Itália e nazistas fora da Alemanha – devem ser banidos? Ah, seria bom que fizessem isso nas redes sociais, pelo menos.
Orientais podem proibir que a gente tenha sorriso amarelo?
Qualquer pessoa que não tenha nascido no bairro da Moóca, em São Paulo, pode falar “orra, meu”?
Brega era sinônimo de prostíbulo, e a música tocada neles era chamada de música de brega, depois simplesmente música brega – pode tocar em qualquer lugar?
Não mineiro pode falar uai?
E para terminar, falando em prostíbulos, aí vão alguns dos significados de putaria: comportamento contrário ao pudor, à decência; falta de honestidade; vileza, imoralidade... Coitadas das prostitutas! Mas se identificam a palavra putaria como coisa típica dos prostíbulos, tendo como base os significados que citei, não seria o caso de as prostitutas exigirem que ocupantes de palácios governamentais e empresariais que parem de fazer putarias?