A apropriação estética das palavras, vestimentas e produções culturais históricas pelos grupos identitários

Leia na coluna de Rudá Ricci: "O divórcio pós-moderno entre forma e conteúdo faz com que conteúdos ultraconservadores se apresentem como progressistas"

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Fredric Jameson escreveu um belo livro sobre o pós-modernismo (o autor sugere que o conceito de pós-modernidade é um equívoco) onde sustenta que se trata de um discurso meramente estético, que substitui a noção ética central no discurso moderno.

A ilustração que emprega para diferenciar o discurso pós-modernista do discurso estético moderno é a comparação entre as botinas pintadas por Van Gogh e os sapatos femininos de Andy Warhol. Num, a estética é humanizada e você percebe o sofrimento; noutro, algo anódino.

A estética pós-moderna é fragmentada. Separa toda expressão cultural em segmentos de identidade grupal. Na prática, elimina o conceito de humanidade e caminha para uma postura ahistórica, projetando o que sugere como “pequena narrativa”, contra a “grande narrativa” humana.
Jameson vai além e sustenta que a arquitetura pós-moderna, por transformar a história e a vida humana em pastiche, constrói shopping centers como espaços em que não se compreende onde é a entrada ou a saída, quando é noite ou dia, enfim, um espaço enclausurado em si.

Recentemente, veio à tona, por esta vertente de pensamento, a censura aos livros de Monteiro Lobato. Nos livros infantis, o racismo aparece em diversos momentos pela pena de Lobato. Contudo, faz parte da história da nossa literatura. A decisão menos sábia é a censura.

Este é um longo debate, inclusive na esquerda. A eliminação de personagens da oposição em fotos oficiais da URSS procurava recontar a história a partir da perspectiva única.

Asad Haider analisou como o discurso identitário se insinuou sobre movimentos feministas e antirracistas dos EUA para debelar o ímpeto de transformação radical da sociedade. Passou a ser usado por ultraliberais que exigem não a superação, mas a inserção. Na prática, o que se deseja é a possibilidade de usufruir de benesses das elites: a possibilidade de ingresso na universidade, mas não a superação da desigualdade social que faz da vida do negro um cativeiro; a possibilidade de uso de cartão de crédito, mas não a extinção da exploração. O ultraliberalismo - porque individualista, no máximo, grupal, comunitário - identitário substitui o conceito de exploração pelo de opressão; a relação entre classes sociais por relações dicotomizadas (opressor e oprimido); a leitura "biologizada" da política (não as relações). Assim, naturaliza a opressão porque identificada com a figura do homem (no caso do neofeminismo ultraliberal), do branco (no caso do neoantirracismo ultraliberal), e assim por diante. A estética pós-moderna deturpa e tortura a história para requalificá-la às suas intenções.

Há linchamentos diários nas redes sociais em virtude deste uso estético de vestuário, modelagem de cabelos, expressões culturais e linguagem. A palavra judiação não pode ser dita porque denotaria racismo contra judeus. Mesmo que o uso não seja este. E assim por diante. A patrulha pós-moderna nada mais faz que ligar o radar para enquadrar esteticamente a todos. Mas, nada mais faz que isso, além de bandeiras de inclusão, não de transformação social.

O modus operandi das patrulhas pós-modernas (grupais e autorreferentes) é similar a empregada pela extrema-direita: acusa, generaliza e envolve emocionalmente grupos comunitários fechados no ataque ao "inimigo". O livro Engenheiro do Caos, que venho citando desde alguns meses, detalha o procedimento.

Em alguns casos, cria-se um sofisma: uma propagação de uma interpretação deturpada sobre uma fala ou uma publicação para, então, se construir toda uma peça acusatória que apresenta certa lógica. Há casos de erro efetivo, cuja reação é desproporcional.

Assim, e finalizo por aqui, vale o cuidado extremo nestes tempos bicudos de acusação fácil e uso político do ódio para criar um "estouro da manada". O divórcio pós-moderno entre forma e conteúdo faz com que conteúdos ultraconservadores se apresentem como progressistas.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum