Escrito en
NOTÍCIAS
el
Esta matéria faz parte da edição 123 da Fórum, compre aqui.
Por Igor Carvalho e Renato Rovai, fotos de André Fontes / Mídia Ninja Discreto e em silêncio, aproximadamente às 19h de uma segunda-feira, Leandro Roque de Oliveira driblou fãs, imprensa e moradores da Ocupação Mauá, na região central de São Paulo, onde moram 273 famílias, para se dirigir sem perder mais tempo para o cantinho reservado à reportagem da Fórum. Era a noite do lançamento de “Crisântemo”, videoclipe de seu novo trabalho. Havia certa ansiedade no ar. Já estavam à sua espera dezenas de jornalistas com suas câmeras e gravadores, ávidos por alguma boa frase do novo pop star. Isso mesmo, Emicida entrou no mainstream. Mas continua o mesmo. Havia prometido uma hora para a entrevista à Fórum e ficou o tempo combinado respondendo a todas as perguntas, sem nenhum tipo de afetação. Papo franco e agradável, que acabou se tornando a capa desta edição. Pode parecer curioso o que se vai dizer a seguir, mas Emicida tem pinta de professor. De bom professor. Suas falas em alguns momentos são cortantes e têm conteúdo polêmico, mas não agridem. Talvez porque sua crítica tenha forte carga poética, que, aliás, está bem articulada no belo videoclipe que lançou naquela noite. Mas não é por isso que Emicida parece um professor. Talvez seja também porque no seu discurso esteja presente a preocupação universal de um homem que não esquece de onde veio e para onde quer ir. Que entende sua geração e seu povo. Mas hoje conhece o lado de cá. Ou de lá. Onde há abundância. E não tenha deixado de pensar com a cabeça de onde veio. Até por isso talvez, não tenha perdido a oportunidade de dar uma cutucada em Lobão, que recentemente o acusou de promover o racismo às avessas: “Cara, manda um cumprimento para ele para ver se o cara fica em paz.” Mas isso foi só um pequeno detalhe da entrevista, na qual ele falou sobre sua infância, a mãe, política, música, racismo, periferia, samba e Mário Quintana. Leandro Roque de Oliveira deu uma aula. Aliás, está na hora de as escolas de periferia de São Paulo adotarem autores como Emicida no seu currículo. Isso mesmo, autores. Por que a garotada não pode estudar gramática com a poesia do rap, por exemplo? Imagine o garoto dizendo: “Professor Emicida, é nóis na fita, mano”. E indo estudar com gosto. Fórum – Vamos começar pelo contexto. Estamos na Ocupação Mauá (prédio que fica na região central da cidade), onde você veio lançar um clipe. A questão social costuma estar presente nas suas músicas. Por que você optou por esse caminho? Qual é o simbolismo de lançar seu novo videoclipe aqui? Emicida – Primeiro, acho que é de importância vital mostrar que existe vida no centro de São Paulo. O centro é uma região estigmatizada, que boa parte da população acredita que seja apenas um ponto de vendas de drogas, e quando eu venho aqui para fazer o lançamento do vídeoclipe do meu álbum novo, talvez consiga pulverizar uma outra ideia sobre isso e mostrar a vida e a força dos moradores que resistem aqui no centro. Eu tenho uma história bem próxima dos movimentos populares, minha mãe fez parte deles, fizemos caminhada com o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] até Brasília, participamos de várias ocupações, ficamos nos acampamentos passando as linhas e marcando os terrenos, sabe? Lugares como Serra Pelada... Fórum – Você chegou a ir para Serra Pelada? Emicida – Não, não é aquela do Pará [risos]. É do lado do Jaçanã, que tem esse apelido, mas nem sei se é o nome certo [risos]. Então eu sempre tive muito próximo disso, e nos últimos tempos passei a ver com mais intensidade a importância de estar realmente ligado com a luta e mostrar a força disso aqui, talvez esse seja o simbolismo todo que isso guarda, de trazer um clipe num momento importante como este, talvez o mais legal de tudo isso seja trazer vários veículos de imprensa que naturalmente não viriam para cá, a exemplo do que aconteceu com a música que a gente fez, chamada “Dedo na ferida”. Aquela música fez a gente ser preso em Belo Horizonte. Quando o Pinheirinho aconteceu, com toda a agressão policial, com toda a intervenção de movimentos em prol dos direitos humanos, independente de tudo isso, o Pinheirinho só foi nota em vários jornais. E, para a gente, a bandeira maior foi quando fizemos a música e conseguimos fazer o assunto ser capa de jornais. E foi muito bom ver a molecada comentando aquilo. Também foi muito bom subir no palco, em um prêmio como o VMB da MTV, e dizer que não tinha muita coisa para ser comemorada, porque a polícia estava invadindo a favela e agredindo moradores. Então, isso é o símbolo, a força da música trazendo a atenção das pessoas para coisas que precisam urgentemente de atenção. Fórum – Você falou sobre a força da música. Você é conhecido por diversas parcerias, de Gaby Amarantos até Elza Soares... Emicida – A Elza acabou de beijar minha boca [risos]. Fórum – Na Virada Cultural, não é? Emicida – Foi, às seis da manhã, na Virada. Fórum – Mas voltando às parcerias, você já recebeu muitas críticas por causa de algumas delas. A intenção, para você, é só a de carregar essa “força” que a música tem para outros espaços e levar sua mensagem? Emicida – Eu sempre tive a bênção, mas já vejo isso como maldição também, de escutar todo tipo de gênero musical. Eu era o mais novo em casa, então nunca mandava no rádio. Tive de aprender a gostar do gosto dos outros, eu era o último que podia opinar. Então eu cresci ouvindo várias músicas, que não eram de minha preferência, mas aprendi a ver a grandeza disso. E quando minha mãe conheceu meu padrasto, aí pensei: “Pronto, mais uma pessoa para mandar no rádio” [risos]. E aí passei a escutar moda de viola, por causa dele, e muito samba. O show novo, que a gente está montando, é bem centrado no samba, eu sou um apaixonado por música brasileira, tenho uma grande admiração pelo jazz, pelo blues e eu faço rap, que é música estadunidense, mas para mim a melhor música do mundo é o samba. Fórum – Ou seja, você bebeu de elementos da música popular brasileira para chegar no seu som. Emicida – Posso até estar falando besteira, mas é algo parecido com o que aconteceu na Tropicália. Eles pegaram, por exemplo, um instrumento com origem no exterior, como a guitarra elétrica, e as estruturas das formações também, mas a poesia, a intensidade, a métrica e os arranjos remetem a coisas que folcloricamente e popularmente são brasileiras. Então, talvez eu esteja tentando fazer isso na minha música, e hoje consigo fazer como nunca, porque graças a Deus eu tenho estrutura para gravar o instrumento que quiser. O que definiu tudo que aconteceu nas mixtapes anteriores foi a escassez. Não tinha estúdio para gravar nem equipamento para fazer as batidas, e graças a Deus essa realidade mudou e tenho a oportunidade de cair para dentro do estúdio e falar: “Porra, hoje queremos um violão de sete cordas, uma caixa de fósforo e fazer uma rima em cima”. Acabei nem respondendo à pergunta... eu falo pra caralho [risos]. Vamos lá: Eu sofro muitas críticas, mas meu coração está entregue à música, é o que você falou, isso é a “força da música”. A parceria que eu fiz com o NXZero talvez tenha sido a mais polêmica de todas. E até hoje é uma das que mais me trazem orgulho. Fórum – Isso acaba te levando para outros públicos também, não é? Emicida – Também. E tem outra coisa, tudo é segmentado. As pessoas gostam de levantar diversas bandeiras, mas elas têm uma pontinha de conservadorismo que grita dentro delas. E para ser sincero, às vezes nem é uma pontinha. Nosso mercado cultural é segmentado e preconceituoso. Não é à toa que você não escuta tocar pagode nas rádios que têm slogan de “rádio jovem”, sabe? É uma coisa que nos distancia muito. Tem um parceiro meu que fala que “a música pop do Brasil é a música que agrada a classe média branca de São Paulo”. Eu concordo com ele. Realmente não temos um cenário cultural que faça jus à diversidade cultural que o País guarda. A mesma estrutura racista do poder, a mesma estrutura do poder financeiro, também está inserida no mercado cultural. Fórum – E o contrário, também acontece, de ficarem esperando o Emicida e o rap paulista dar o aval para que os outros rappers de outros estados sejam considerados importantes pelo movimento? Emicida – Tem muito isso. O Marcelo D2 e Gabriel o Pensador são dois artistas que deixam essa dúvida na cabeça das pessoas. Porra, a música nasce no coração, e não no estado geográfico. São dois artistas bons pra caralho, não precisam do carimbo de ninguém. Fórum – Para continuar no rap. Você é a segunda geração do rap em São Paulo, certo? Emicida – Até mais, talvez já seja a terceira. Fórum – Está mais fácil fazer rap? Emicida – Vamos colocar isso até socialmente. A realidade na periferia mudou muito, embora a gente conviva com muita violência, hoje conseguimos enxergar algumas opções, coisa que há 30 anos, quando a semente do hip-hop foi plantada, não era possível. Existia o sonho, aliado com a necessidade de luta e de grito, e só. Há 30 anos foi uma luta ferrenha, tanto que muita gente, quando vem me entrevistar, tem uma tendência burra de achar que a minha geração é a geração inteligente do rap, mas isso é extremamente preconceituoso. Foi extremamente importante o Racionais MC’s fazer tudo que fez, o que fez o Xis, Consciência Humana, DMN, Facção Central e tantos outros. Temos de dar vazão e dar respeito a isso. Eu aprendi muito com o Brown e com o Kamau, que vieram antes de mim. Eu respeito o Quinto Andar, Max BO, Rappin Hood e o Sabotage. E quer saber? Eu sou a quarta geração, tem o Pepeu, que é mais antigo ainda. A gente precisa escrever um livro, a nossa história está ficando muito oral. E isso é delicado. Vários dialetos e idiomas desaparecem por causa disso. O hip-hop precisa ser escrito, filmado e documentado. O grande diferencial da minha geração para as outras é a forma como nos relacionamos com a mídia. Falar que eu sou um dos primeiros caras a trazer o samba é bizarro, porque em 1988 o The Brothers Rap, que fez um som chamado Rapagode, já era foda. Como é legal o que o D2 fez, o que o Ataliba fez, tanto na poesia quanto na musicalidade. Fórum – Recentemente, o Lobão disse que os Racionais são o braço armado do PT. Você foi preso em Belo Horizonte. Além disso, teve a recente polêmica em torno do show dos próprios Racionais na Virada Cultural. O rap ainda é muito criminalizado? Emicida – Esses exemplos que você citou mostram que pouca coisa mudou. Tem uma coisa que acontece, que não está para ser debatida, porque é unânime: O hip-hop não é uma moda. Não existe uma moda que dure 30 anos. Não somos passageiros. Isso que tem acontecido, de artistas independentes, do hip-hop, se tornarem populares, mostra isso. Nas periferias do Brasil se respeita muito o rap. Você vai numa favela, tem uma frase do Brown escrita na parede. Esse lado conservador, e por que não dizer ignorante, do Lobão é de gente que não fala coisa com coisa. Ele disse que artistas como Criolo e Emicida fortalecem um racismo ao contrário. Então, ele quer dizer que eu estou lutando contra um racismo que nunca existiu? E ainda fala que eu não o cumprimento... é algo que me parece meio vaidoso. Pô, será que alguma vez a gente se encontrou e eu não cumprimentei o cara? Pô, faz um favor, manda um cumprimento para ele, para o cara ficar em paz... [risos]. Fórum – Você parece estudar muito história da música. É isso mesmo ou é só impressão minha? Emicida – Vou te contar uma história foda. Nessas últimas semanas me peguei pensando muito nisso. Eu estudo mais história da música do que música mesmo. Eu sou curioso demais. Tem duas coisas que a pessoa nunca pode perder na vida: curiosidade e teimosia. Eu tenho essas duas porras aí [risos]. Acredito que a música que eu faço é continuidade de muita coisa, vejo elementos do jazz nela, do blues, do samba, então eu vou viajando e buscando referências. Eu tenho a necessidade de fazer um elo entre a história de nossa cultura e minha geração, considero minha geração dispersa, não conhece tudo que já foi produzido culturalmente nesse País. Fórum – Você fala da sua geração do rap ou da sua geração inteira? Emicida – Geral mesmo, a minha faixa etária... Fórum – Quantos anos você tem? Emicida – Eu tenho 27 anos. A gente não conhece muita coisa porque não existem livros contando nossa história, a história negra é invisibilizada. A minha geração não via o rap na televisão, essa geração que vem agora vai se acostumar com isso. A minha geração, para acompanhar o rap, tinha de ir nos eventos, e quando alguém do rap aparecia na TV tinha de ter base para falar as coisas. Eu via entrevistas do Rappin Hood, do MV Bill e via que os caras detinham grande conhecimento. Isso aí plantou em mim o desejo de ter conhecimento. Se eu for falar com alguém, eu quero falar alguma coisa que seja relevante e importante. Por isso eu preciso ter base. Tem uma coisa óbvia, o Mestre de Cerimônia, o MC, ele se comunica através da voz, ele precisa falar, ele passa a informação, e não tem como passar informação sem ter informação. Fórum – Você fez escola pública, Emicida? Emicida – Sim, até o colegial... Fórum – Você tem um português corretíssimo, e nós sabemos que as escolas públicas de São Paulo infelizmente não têm produzido pessoas que articulam bem a língua portuguesa... Emicida – Obrigado, cara. A educação é a nossa causa mais urgente, se a gente não cuidar disso, vai caminhar cada vez mais para dentro do abismo. Fórum – Fala um pouco disso, você foi buscar nos livros? Como foi tua busca? O estereótipo midiático aponta para um perfil de jovem na periferia envolvido com criminalidade, sem conhecimento, e você é o contrário... Emicida – Mas é o contrário, realmente. Quando as pessoas se preocupam em conhecer um pouco o hip-hop, vão descobrir que a última coisa que está vinculada ao hip-hop é a marginalidade. A marginalidade do hip-hop é o lugar comum que vende, para a mídia. A gente vem de uma ditadura recente, e vive em outra, que é a ditadura da comunicação. A gente não tem um veículo de grande porte que faça um contraponto ao que a mídia tradicional faz. Eles fazem o que bem entendem em relação à comunicação. O povo criminaliza a denúncia, o povo é educado para criminalizar a denúncia, o cara que fala é o chato. Eu conheço muitos artistas, hoje eu circulo no mainstream, e é muito louco ver quantos artistas chegam em mim e falam: “Porra meu, você falou o que precisava ser dito”. Fórum – Mas ele não diz... Emicida – [risos] É isso, é isso. Quando ele sobe e tem a oportunidade de falar para mais pessoas do que eu falo, não faz isso. No fim das contas, o trabalho sujo sempre sobra para o rap. A gente acaba vestindo essa camisa e comprando as brigas, mesmo. É impressionante como o hip-hop, principalmente na América Latina, se tornou um movimento social. Fórum – São os novos quilombos? Emicida – Sim, é uma resistência. O lugar que estamos aqui [Ocupação Mauá] é uma espécie de quilombo. Fórum – Nas suas letras você busca a linguagem das ruas, usa o “nóis”, e, por outro lado, admira Mário Quintana. Onde essas vertentes se encontram na hora de compor? Emicida – Tem uma frase do Sérgio Vaz que é muito boa. Ele fala algo como: “Quando nóis vai, é porque nóis vai mesmo”. Sabe, é a maneira que as pessoas falam no lugar onde eu nasci, e musicalmente, para mim, é um artifício mais interessante, a norma culta é quadrada e não tem suingue. Eu teria dificuldade de colocar ritmo em uma linguagem que não fosse coloquial. Então, consigo diminuir palavras, quebrar palavras, alterar a sílaba tônica delas, e isso, musicalmente, gera um resultado muito mais interessante do que usar a linguagem formal. Eu sou muito fã do Quintana, a simplicidade da poesia dele é encantadora. Tenho alguns livros dele, mas isso não quer dizer que eu não possa usar o “nóis”. Agora tem o outro lado, eu quero fazer rap do jeito que gosto. Para mim, ideologicamente e musicalmente, é um desafio enorme não ser obrigado a falar o que as pessoas querem ouvir. Elas acham que eu tenho de chegar lá e fazer um discurso semelhante a todos os outros caras que fazem rap. Tem caras que fazem isso muito bem. Com todo o respeito, eu não preciso competir com o Facção Central sobre quem faz a música mais pesada, tem espaço para todo mundo. O meu desafio é alcançar a intensidade poética do samba, por isso o samba é uma diretriz maior na minha vida. Da mesma maneira que o rap consegue dizer para você o que ele disse em “Diário de um detento”, eu acredito que o rap tem de conseguir dizer coisas como o que o Cartola disse em “Alvorada no morro”, sabe? Essa é minha meta. Para algumas pessoas, isso torna o rap mais comercial, mas para mim é algo magnífico, eu tenho esse apego à poesia, e acho que ela tem de fazer rir e chorar. Fórum – Por conta da popularização do rap, essa sua geração está sendo chamada para tocar em lugares de classe média e alta. Como você lida com isso? Emicida – Você acaba passando em mais veículos e alcança mais pessoas, mas, desde 1995, os playboys colocam Racionais para tocar nos carros. Eu vivi muita coisa nessa vida, cara. A gente descia para pedir esmola na Vila Zilda e passavam uns carros de boy na época, uns Escorts, e os caras ouvindo rap. A gente via aquilo e falava: “Os caras não entendem o bagulho”. Mas tem outra coisa também, não posso criar barreiras. Fórum – Os pais tinham medo de os filhos irem em shows de rap. Emicida – A minha mãe tinha um puta receio... Fórum – Como você chegou nas rinhas de MC’s? Emicida – Eu sempre tive facilidade com rimas e música. Eu ouvia uma música no rádio e criava uma versão dela na minha cabeça. Com o passar do tempo, eu comecei a mudar palavras, fazer na cadência do rap, e tinha um parceiro meu, o Porquinho, que a gente rimava em um “embromation”, em inglês, mas é louco isso, porque virou uma chave na nossa cabeça e passamos a rimar em inglês, mas só ouvíamos rap nacional. O primeiro rap que eu ouvi foi o do Pepeu, “Nomes de meninas”, e depois fui seguindo o caminho, com Racionais, Gog, e aí, quando escutei pela primeira vez o Public Enemy, eu fiquei muito puto cara, muito mesmo, e falei: “Esses gringos filhos da puta estão imitando Racionais” [risos]. Fiquei puto mesmo, porque minha referência era o rap nacional... Eu venho de uma família musical, com tradição de baile, meu pai tocava em bailes, tinha lá a coleção de vinil dele, hoje eu tenho a minha. Fórum – Então você tem coleção de LPs? Emicida – Eu sou apaixonado por vinil. Eu vou para o exterior e os caras querem comprar uns clássicos, eu até gosto, mas minha parada mesmo é comprar disco de música brasileira. Minha parada é achar um Vitor Assis Brasil, ou artistas que não são populares, que infelizmente não são. Fórum – O nome de sua primeira mixtape era “Pra quem já mordeu um cachorro por fome, até que eu cheguei longe”. Agora você está mais longe ainda do que naquela época. Hoje você é um jovem, negro, de periferia, que está entrando no mainstream. E é escutado por essa galera que vive o que você viveu, isso tudo passa na sua cabeça? Emicida – Cara, passa diariamente. É uma responsabilidade muito pesada, porque de 30 anos para cá o nosso povo foi ensinado a brigar entre si. Então, de alguma maneira, isso ia explodir dentro do hip-hop, da mesma maneira que alcançamos muitos lugares e falamos com muita gente, tem gente que é contra nosso trabalho. Eu respeito a perspectiva de todas essas pessoas, desde que me apresentem argumentos inteligentes. Se eu desse ouvido para essas pessoas, eu seria só mais um neguinho de favela. Existem milhares de barreiras e elas aumentam a cada vez que se conquista algo. Por exemplo, aquele lance que o Juca Ferreira [Secretário de Cultura do município de São Paulo] está fazendo aqui em São Paulo, o “Existe Diálogo em SP”, e eu fui no do hip-hop e, na minha leitura, teve algo muito importante que aconteceu ali. O Juca tomou muita pedrada que não era dele, porque se dispôs a conversar. E eu aplaudo ele pela coragem e pela iniciativa, mas eu partilho de uma coisa que ele disse naquele dia: “Não mudamos 500 anos em 4.” Eu estou em uma luta intensa, cara, e sei que o que estou plantando aqui, hoje, talvez não seja colhido pela minha filha e nem pela filha dela. Tem um político que fez um discurso sobre os 125 anos de abolição, o Roberto Requião (PMDB-PR). Ele sintetizou muito bem a história da escravidão no Brasil e as consequências dela, mas tem algo com que eu compactuo, ele disse que os 300 anos de exclusão e violência que o negro sofreu necessitam de muito mais que 300 anos para serem reparados. Fórum – Um dia, o Brasil teve um ministro da Cultura, o Gilberto Gil, que era da Tropicália, que havia 30 anos era combatida porque era coisa de maluco e maconheiro. Será que um dia vamos ter um ministro da Cultura oriundo do rap? Emicida – Cara, eu acredito que sim. A política vive flertando com a música, eles procuram nóis pra tudo. Infelizmente, a grande verdade é que neste momento, no Brasil, a informação está tão bagunçada e em relação à comunicação. O povo criminaliza a denúncia, o povo é educado para criminalizar a denúncia, o cara que fala é o chato. Eu conheço muitos artistas, hoje eu circulo no mainstream, e é muito louco ver quantos artistas chegam em mim e falam: “Porra meu, você falou o que precisava ser dito”. Fórum – Mas ele não diz... Emicida – [risos] É isso, é isso. Quando ele sobe e tem a oportunidade de falar para mais pessoas do que eu falo, não faz isso. No fim das contas, o trabalho sujo sempre sobra para o rap. A gente acaba vestindo essa camisa e comprando as brigas, mesmo. É impressionante como o hip-hop, principalmente na América Latina, se tornou um movimento social. Fórum – São os novos quilombos? Emicida – Sim, é uma resistência. O lugar que estamos aqui [Ocupação Mauá] é uma espécie de quilombo. Fórum – Nas suas letras você busca a linguagem das ruas, usa o “nóis”, e, por outro lado, admira Mário Quintana. Onde essas vertentes se encontram na hora de compor? Emicida – Tem uma frase do Sérgio Vaz que é muito boa. Ele fala algo como: “Quando nóis vai, é porque nóis vai mesmo”. Sabe, é a maneira que as pessoas falam no lugar onde eu nasci, e musicalmente, para mim, é um artifício mais interessante, a norma culta é quadrada e não tem suingue. Eu teria dificuldade de colocar ritmo em uma linguagem que não fosse coloquial. Então, consigo diminuir palavras, quebrar palavras, alterar a sílaba tônica delas, e isso, musicalmente, gera um resultado muito mais interessante do que usar a linguagem formal. Eu sou muito fã do Quintana, a simplicidade da poesia dele é encantadora. Tenho alguns livros dele, mas isso não quer dizer que eu não possa usar o “nóis”. Agora tem o outro lado, eu quero fazer rap do jeito que gosto. Para mim, ideologicamente e musicalmente, é um desafio enorme não ser obrigado a falar o que as pessoas querem ouvir. Elas acham que eu tenho de chegar lá e fazer um discurso semelhante a todos os outros caras que fazem rap. Tem caras que fazem isso muito bem. Com todo o respeito, eu não preciso competir com o Facção Central sobre quem faz a música mais pesada, tem espaço para todo mundo. O meu desafio é alcançar a intensidade poética do samba, por isso o samba é uma diretriz maior na minha vida. Da mesma maneira que o rap consegue dizer para você o que ele disse em “Diário de um detento”, eu acredito que o rap tem de conseguir dizer coisas como o que o Cartola disse em “Alvorada no morro”, sabe? Essa é minha meta. Para algumas pessoas, isso torna o rap mais comercial, mas para mim é algo magnífico, eu tenho esse apego à poesia, e acho que ela tem de fazer rir e chorar. [caption id="attachment_27645" align="alignleft" width="403"] Ocupação Mauá, na região central de São Paulo,onde moram 273 famílias[/caption] Fórum – Por conta da popularização do rap, essa sua geração está sendo chamada para tocar em lugares de classe média e alta. Como você lida com isso? Emicida – Você acaba passando em mais veículos e alcança mais pessoas, mas, desde 1995, os playboys colocam Racionais para tocar nos carros. Eu vivi muita coisa nessa vida, cara. A gente descia para pedir esmola na Vila Zilda e passavam uns carros de boy na época, uns Escorts, e os caras ouvindo rap. A gente via aquilo e falava: “Os caras não entendem o bagulho”. Mas tem outra coisa também, não posso criar barreiras. Fórum – Os pais tinham medo de os filhos irem em shows de rap. Emicida – A minha mãe tinha um puta receio... Fórum – Como você chegou nas rinhas de MC’s? Emicida – Eu sempre tive facilidade com rimas e música. Eu ouvia uma música no rádio e criava uma versão dela na minha cabeça. Com o passar do tempo, eu comecei a mudar palavras, fazer na cadência do rap, e tinha um parceiro meu, o Porquinho, que a gente rimava em um “embromation”, em inglês, mas é louco isso, porque virou uma chave na nossa cabeça e passamos a rimar em inglês, mas só ouvíamos rap nacional. O primeiro rap que eu ouvi foi o do Pepeu, “Nomes de meninas”, e depois fui seguindo o caminho, com Racionais, Gog, e aí, quando escutei pela primeira vez o Public Enemy, eu fiquei muito puto cara, muito mesmo, e falei: “Esses gringos filhos da puta estão imitando Racionais” [risos]. Fiquei puto mesmo, porque minha referência era o rap nacional... Eu venho de uma família musical, com tradição de baile, meu pai tocava em bailes, tinha lá a coleção de vinil dele, hoje eu tenho a minha. Fórum – Então você tem coleção de LPs? Emicida – Eu sou apaixonado por vinil. Eu vou para o exterior e os caras querem comprar uns clássicos, eu até gosto, mas minha parada mesmo é comprar disco de música brasileira. Minha parada é achar um Vitor Assis Brasil, ou artistas que não são populares, que infelizmente não são. Fórum – O nome de sua primeira mixtape era “Pra quem já mordeu um cachorro por fome, até que eu cheguei longe”. Agora você está mais longe ainda do que naquela época. Hoje você é um jovem, negro, de periferia, que está entrando no mainstream. E é escutado por essa galera que vive o que você viveu, isso tudo passa na sua cabeça? Emicida – Cara, passa diariamente. É uma responsabilidade muito pesada, porque de 30 anos para cá o nosso povo foi ensinado a brigar entre si. Então, de alguma maneira, isso ia explodir dentro do hip-hop, da mesma maneira que alcançamos muitos lugares e falamos com muita gente, tem gente que é contra nosso trabalho. Eu respeito a perspectiva de todas essas pessoas, desde que me apresentem argumentos inteligentes. Se eu desse ouvido para essas pessoas, eu seria só mais um neguinho de favela. Existem milhares de barreiras e elas aumentam a cada vez que se conquista algo. Por exemplo, aquele lance que o Juca Ferreira [Secretário de Cultura do município de São Paulo] está fazendo aqui em São Paulo, o “Existe Diálogo em SP”, e eu fui no do hip-hop e, na minha leitura, teve algo muito importante que aconteceu ali. O Juca tomou muita pedrada que não era dele, porque se dispôs a conversar. E eu aplaudo ele pela coragem e pela iniciativa, mas eu partilho de uma coisa que ele disse naquele dia: “Não mudamos 500 anos em 4.” Eu estou em uma luta intensa, cara, e sei que o que estou plantando aqui, hoje, talvez não seja colhido pela minha filha e nem pela filha dela. Tem um político que fez um discurso sobre os 125 anos de abolição, o Roberto Requião (PMDB-PR). Ele sintetizou muito bem a história da escravidão no Brasil e as consequências dela, mas tem algo com que eu compactuo, ele disse que os 300 anos de exclusão e violência que o negro sofreu necessitam de muito mais que 300 anos para serem reparados. Fórum – Um dia, o Brasil teve um ministro da Cultura, o Gilberto Gil, que era da Tropicália, que havia 30 anos era combatida porque era coisa de maluco e maconheiro. Será que um dia vamos ter um ministro da Cultura oriundo do rap? Emicida – Cara, eu acredito que sim. A política vive flertando com a música, eles procuram nóis pra tudo. Infelizmente, a grande verdade é que neste momento, no Brasil, a informação está tão bagunçada e desconexa em relação à política que existe direita e esquerda, mas as pessoas querem fazer com que se propague a ideia de que é tudo igual e que não existe mais nada. A gente tem a Leci Brandão, o Netinho de Paula e o Gilberto Gil. Eu acho do caralho, gosto de todos eles e estou com eles sempre, mas sinto falta de termos ícones que não precisem abdicar de suas carreiras artísticas em alguma instância para fazer política e usar da sua popularidade na música para que as pessoas deem um voto. É do caralho existir um Emicida? É, do caralho. Mas a minha luta é que exista um Emicida advogado, um Emicida médico, certo? Fórum – Você é a favor das cotas? Emicida – Sim. Eu acho que deveria haver mais cota ainda. Tem uma questão interessante aí, o Brasil tem uma dificuldade grande de raciocinar fora da ótica branca. Chegamos a um ponto em que o negro passou a negar a própria cor, o negro é sempre o outro, a gente se retraiu. Sabe, eu vou para um evento e você percebe que, de acordo com o preço do ingresso, a plateia vai clareando. Eu acabei de ver um documentário sobre o Bob Marley em que ele fala sobre isso. Nas primeiras vezes em que ele foi tocar, nos EUA, ele só tocava para branco, isso intrigava ele. Ele pensava que fora da Jamaica os pretos não gostavam do som dele. A gente sofre muita crítica por isso, porque tem esse pensamento burro de achar que a gente levou o rap para os brancos, quando na verdade o rap alcançou todo mundo. Ao mesmo tempo em que estou tocando numa balada em Goiânia, com ingresso custando R$ 200, eu estou na Cooperifa e tocando de graça na rua. A gente está nas quebradas, junto com o funk, mais do que nunca. Existe um lado conservador dentro do hip-hop que acaba fragmentando a cultura da favela. Eu não gosto de todas as letras do funk, mas o reconheço como uma manifestação cultural autêntica. E concordo com o Hermano Vianna quando ele diz: “O funk me convence sobre a vida da arte brasileira contemporânea mais do que muita voz e violão.” Isso aí é algo que eu nem abro ao debate. Depois de viajar tanto, conheci a Gangue do Elétro, o Marcos Maderito e a Gaby Amarantos muito antes de eles tocarem aqui. Mano, eu cresci em periferia, onde a maioria é filho de nordestino e nortista. Na Vila Madalena, o tecnobrega é muito exótico, mas quando o bagulho se torna sucesso lá, pode ter certeza que já tocou na quebrada faz cinco meses. Quando fui tocar em Belém, o Maderito estava pirando no meu show. Então, no mesmo dia fui em uma tenda onde ele estava tocando, para prestigiar. Quando ele me viu, o cara me chamou, e chamou rimando, no tempo do tecnobrega, que é um tempo semelhante às rimas que eram feitas em São Paulo nos anos 1980. Por exemplo, você tinha o cara que chamava Jacaré do Tatuapé, que cantava “Gererê”, que é extremamente popular nas favelas até hoje. Você usa o Gererê e usa uma rima com putaria no meio e é sucesso [risos]. O Pepeu, lá atrás, cantava com quatro rimas e refrão. Hoje não, são 16 barras e vem o refrão, mais 16 barras. Tem uma complexidade maior. Embora o tecnobrega pareça mais superficial para algumas pessoas, mas quando você vive, lá você entende o que eles querem dizer. A grande verdade é que você precisa derrubar todas as barreiras para valorizar a cultura do outro. O Sudeste estigmatiza o resto do Brasil. Fórum – Fala um pouco do seu disco novo. Emicida – Esse disco é o momento em que eu consigo fazer a música que eu queria fazer. Esse é o momento em que, com todo respeito e humildade, nóis manda prender e manda soltar. Esse disco novo flerta com esse negócio da música falada, ele flerta com o samba sincopado do Noel Rosa. Eu tentei buscar isso, a música falada no Brasil, trazer as células do Candomblé. Mas o samba não vai nesse lance de samplear um pandeiro ou um cavaco. É a poesia do samba. F