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Aos 50 anos do plebiscito que optou pelo regime presidencialista no país, livro ajuda a reconstituir trajetória contraditória de Jango e lembra que agenda interrompida pelo golpe de 1964 segue inconclusa
Por Daniel Merli
A matéria abaixo faz parte da edição 118 de Fórum, compre aqui.
Há 50 anos, o Brasil decidia interromper sua breve experiência parlamentarista. Naquele 6 de janeiro de 1963, os brasileiros optaram, na urna, pela volta dos plenos poderes ao então presidente João Goulart (PTB). Fortalecido pela vitória, Jango, como era conhecido, começava um processo de radicalização entre forças populares e o poder oligárquico no Brasil, em meio ao cenário de Guerra Fria no mundo.
Os bastidores dos 31 meses de governo Jango, uma das mais intensas passagens da História brasileira no século XX, são contados em detalhes no livro João Goulart – uma biografia, do historiador Jorge Ferreira, professor de História na Universidade Federal Fluminense (UFF), editado pela Civilização Brasileira (2011). Mais que jogar luz sobre um período conturbado da vida pública brasileira – que desembocaria em uma ditadura de mais de duas décadas –, o livro ajuda a refletir sobre amarras ainda pendentes na política brasileira, que transformaram alguns temas em verdadeiros tabus.
Jango assumiu a Presidência da República em setembro de 1961. No entanto, o acordo com os militares que permitiu sua posse incluía a adoção do regime parlamentarista no Brasil. A negociação foi costurada por Tancredo Neves em conversas entre Jango e Ernesto Geisel, então chefe da Casa Militar. Com o parlamentarismo, os militares acreditavam que Jango não teria força para implementar reformas e teria de dividir poder com os representantes dos ruralistas instalados no Congresso Nacional. Mais de um ano após sua posse, no entanto, Jango cedeu à pressão da esquerda, principalmente de seu cunhado Leonel Brizola, convocando um plebiscito para definir o regime político. A votação transformou-se basicamente em um referendo sobre o governo Jango, dando-lhe grande respaldo popular: o presidencialismo foi a opção de 11 milhões de eleitores, quase o dobro dos 6 milhões de votos que Jânio havia obtido na eleição presidencial.
A renúncia de Jânio Quadros (UDN) acontecera em agosto de 1961, quando Jango estava na China, onde foi reunir-se com Mao Tsé-Tung para acordos de cooperação. Sabendo da possibilidade de golpe, fez um longo retorno ao Brasil, com paradas na Suíça, França, Espanha, EUA e Uruguai, além de diversas pequenas escalas. Só pisou em solo brasileiro no mês seguinte, quando tinha garantias de que assumiria, após dar a Tancredo o “OK” à condição colocada pelos militares de governar sob o regime parlamentarista.
O principal apoio que recebeu para seu retorno foi a Cadeia da Legalidade, montada pelo então governador gaúcho Leonel Brizola, narrada em detalhes por Ferreira. Jango, em retribuição, regressou a Brasília para sua posse, fazendo uma escala em Porto Alegre. No entanto, Jango não realizou nenhum discurso de agradecimento, apenas acenando da janela do Palácio do Piratini. O silêncio havia sido uma das exigências dos militares, preocupados com a mobilização realizada por Brizola. O fato desagradou à população reunida em frente ao Piratini, que vaiou Jango. O então vice de Jânio teria, no entanto, optado pelo “caminho do meio” para não afrontar os militares e garantir a sustentação de seu governo.
[caption id="attachment_34312" align="alignleft" width="270"] (Dick DeMarsico / Library of Congress)[/caption]
A opção por uma saída que tentasse agradar aos dois lados marcou vários momentos de seu governo, bem descritos no livro. Goulart queria manter o apoio popular, mas, ao mesmo tempo, buscar apoio institucional – de militares e do Congresso – para garantir que as reformas acontecessem.
Jango era um líder político popular – ao contrário da imagem um tanto apagada que restou para a história. Não à toa teve mais votos como vice do que o próprio líder da chapa Juscelino – na época, as eleições eram separadas. Ele carregava ainda a popularidade de ter sido ministro do Trabalho de Getúlio Vargas e seu mais evidente sucessor político.
Enquanto fazia questão de manter contato direto com as lideranças da Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT) e da União Nacional dos Estudantes (UNE), Jango tentava aproveitar a pressão popular para aprovar uma agenda mínima de reformas no Congresso Nacional. Mas, para isso, também considerava importante não romper com o seu partido, o PTB, nem com o PSD, de Juscelino, que representava o centro, diante da direita encabeçada pela UDN.
Em 1963, com o mandato mais próximo do fim, teve início a discussão sobre sua sucessão, sendo Juscelino o principal nome apontado. Goulart teria visto que passaria à história como um mandatário que não conseguiu atingir os objetivos.
A tentativa de integrar “40 milhões de irmãos”
A partir de março de 1963, Jango dá início a uma série de medidas que apontam para a plataforma das esquerdas. Regulamenta a Lei de Remessa de Lucros, proibindo as empresas estrangeiras que operavam no País com financiamento público de enviar seus dividendos ao exterior. Às vésperas do Natal daquele ano, decreta o monopólio da Petrobras na importação de petróleo e derivados.
No entanto, sua ação de maior impacto político foi o decreto desapropriando os 20 quilômetros de terras a cada lado de rodovias, ferrovias e rios federais. Anunciada em um grande evento público na Central do Brasil em 13 de março de 1964, foi o estopim final para o golpe militar.
Ferreira descreve bem como outros fatores pesaram no golpe. O erro de análise do comando militar ligado a Jango seria um deles. Subestimaram a possibilidade de golpe, passando ao presidente, em diversas vezes, relatórios que informavam o controle da maioria das estruturas militares do País e o isolamento dos golpistas. Os grupos mais à esquerda, como o PCB e o próprio Brizola, consideravam que a radicalização de posições entre Jango e a direita era o prenúncio de uma revolução socialista no Brasil. A ruptura, em algum momento, seria inevitável, e o governo implementaria as reformas de base independentemente da oposição do Congresso. Em janeiro de 1964, o líder comunista Luís Carlos Prestes chegou a defender, em entrevista à TV Tupi, a reeleição de Jango – mecanismo então inexistente na legislação brasileira. Acabaram surpreendidos no 1º de abril de 1964.
[caption id="attachment_34314" align="alignleft" width="126"] Mais que jogar luz sobre os aspectos erráticos do governo e detalhar os fatores que levaram ao golpe, o livro estimula a olhar para frente[/caption]
Do lado da direita, Ferreira mostra que, mais que o discurso da “ameaça comunista”, o que inicialmente fomentou o discurso da direita contra Jango era a perda de renda dos trabalhadores e da classe média, um argumento muito mais forte para desgastar o presidente.
Além da profunda crise econômica pela qual o País passava, a base principal do discurso era a crítica à corrupção. O governador do estado da Guanabara Carlos Lacerda, principal figura da oposição a Jango e também a Getúlio, usava seu jornal Tribuna da Imprensa para dar a linha mestra do discurso contra o governo. Para Lacerda, o Brasil estava mergulhado em um “mar de lama” com uma “corrupção nunca antes vista”. O governo cometeria irregularidades com o objetivo de “perpetuar no poder” uma “república sindicalista”, atentando contra a democracia brasileira.
Agenda interditada
Mais que jogar luz sobre os aspectos erráticos do governo Jango e detalhar os fatores que levaram ao golpe, o livro do historiador Jorge Ferreira estimula a olhar para frente. Impossível não lembrar, ao ler o livro, que grande parte da agenda de reformas que derrubou Jango permanece pendente de realização até o momento. E que a possibilidade de perda de respaldo político do governo no Congresso e entre o empresariado continua sendo um trauma para o debate de propostas reestruturantes da sociedade brasileira.
A conciliação de contraditórios, elemento básico da democracia, desandou para a interdição de debates polêmicos. “Temos de trabalhar com outra lógica que não seja a eleitoral”, defende José Antonio Moroni, diretor do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). Segundo ele, a postura dos partidos de esquerda durante as campanhas é de “não debate”. “Nosso projeto político depende do conflito”, avalia o ativista, que é responsável, entre outras coisas, pela campanha em favor do financiamento público de campanhas eleitorais.
O resultado é que, mesmo quase 50 anos após o golpe, o País não conseguiu superar muitas das contradições econômicas que geraram as crises políticas daquele início da década de 1960. Obviamente, algumas das chamadas “reformas de base” foram atingidas com a Constituição de 1988, como a universalização do voto – inclusive para os analfabetos – e a extensão dos direitos da Seguridade Social ao trabalhador rural – mesmo sem contribuir com a Previdência.
No entanto, alguns dos principais motes das forças populares continuam sendo temas interditados ou totalmente abandonados da pauta política central. Basta lembrar que o único momento, na última década, em que a reforma agrária chegou a ocupar parte da agenda principal do Congresso Nacional foi o debate, em 2012, sobre a Proposta de Emenda Constitucional (PEC), que torna obrigatória a desapropriação de terra onde for encontrado trabalho análogo à escravidão.
Além da reforma agrária, uma “reforma eleitoral visando a anular a influência do poder econômico” era uma das plataformas defendidas por Jango. O relatório do deputado Henrique Fontana (PT-RS), propondo o financiamento público exclusivo de campanha, que segue sem votação há dois anos na Câmara, é só mais uma das tentativas de reduzir a influência do poder econômico na política brasileira.
O aumento da tributação sobre empresas, como forma de desonerar a classe média, é um tabu inquebrantável. A tentativa do governo Lula de renovar a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) deu em água, após a mobilização de empresários, encabeçada por Paulo Skaf.
Pouco andou o projeto de imposto sobre grandes fortunas do deputado Dr. Aluízio (PV-RJ), relatado pela deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), que retomou proposta apresentada pela primeira vez no Congresso Nacional pelo então senador Fernando Henrique Cardoso. O projeto dos deputados visa a obter R$ 13 bilhões por ano a mais para investimento na saúde pública. A Inglaterra, onde há um imposto sobre patrimônio, investe R$ 340 bilhões por ano para atender 50 milhões de pessoas. No Brasil, o orçamento todo do Ministério da Saúde é de R$ 80 bilhões para atender mais de 190 milhões de pessoas.
Em março de 1964, em um evento com prefeitos no Palácio do Planalto, Jango discursou: “O que nós desejamos com essas reformas é integrar, na sociedade brasileira, mais de 40 milhões de irmãos nossos, também brasileiros, que precisam participar da vida de seu país e da riqueza nacional.” Curiosamente, 40 milhões foi justamente o número de pessoas integradas à vida econômica brasileira nos últimos dez anos – logicamente, hoje, em um universo populacional maior. Para tal, nem Lula e tampouco Dilma recorreram a mudanças profundas na legislação brasileira ou na estrutura tributária do país. A façanha política de ambos não anula a necessidade de reformas estruturantes para garantir um novo ciclo de melhoria de qualidade de vida da população.
Aos que acreditam na necessidade de se aprofundar o ciclo de inclusão social, cabe procurar demonstrar a necessidade de reformas estruturais pendentes do sistema para distribuir renda e superar o desafio de construir uma sociedade justa para 190 milhões de habitantes. F