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Integrante da delegação boliviana relata disputas entre G77 e União Europeia e especula sobre os limites do encontro da ONU.
Por Katu Arkonada
Publicado por Outras Palavras. Tradução: Antonio Martins
Há vinte anos, em junho de 1993, celebrou-se no Rio de Janeiro a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, também conhecida como Cúpula da Terra. Dela participaram 172 governos, com presença de 108 chefes de Estado e governo.
Os resultados foram a aprovação do Programa 21, um plano de ação mundial para promover o desenvolvimento sustentável, e a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento – basicamente, um conjunto de princípios que definem direitos e obrigações dos Estados em relação à natureza e ao desenvolvimento. Além disso, a Cúpula da Terra deu origem à Convenção-marco das Nações Unidas sobre Mudança Climática, que em 1997 se desdobraria no famoso Protocolo de Kioto para a redução das emissões de gases do efeito estufa.
A Cúpula teve dois grandes protagonistas. De um lado, George Bush pai, presidente dos Estados Unidos, que anunciou no Rio que “o estilo de vida norte-americano não está aberto a negociações”. De outro, o comandante da revolução cubana, Fidel Castro, cuja posição pode ser resumida na seguinte frase, extraída de seu discurso ao plenário da reunião: “Se se quer salvar a humanidade desta autodestruição, é preciso distribuir melhor as riquezas e tecnologias disponíveis no planeta. Menos luxo e menos desperdício em poucos países, para que haja menos pobreza e menos fome em grande parte do planeta. Não mais transferências, ao terceiro mundo, de estilos de vida e hábitos de consumo que arruínam o meio ambiente. Façamos mais racional a vida humana. Construamos uma ordem econômica internacional justa. Utilizemos toda a ciência necessária para um desenvolvimento sustentado, sem contaminação. Paguemos a dívida ecológica, e não a dívida externa. Que desapareça a fome – não o homem”.
Fidel enfrentava-se, como parte dos países desenvolvimento, a um Norte que pudera industrializar-se, desenvolver-se e construir seus Estados de Bem-estar às custas de um Sul – os países do terceiro mundo, colônias convertidas pouco antes em nações exploradas e saqueadas por uma ordem econômica mundial injusta. Neste sentido, propunha, uma vez terminada a Guerra Fria, reorientar o gasto militar e armamentístico para promoção do desenvolvimento do terceiro mundo e combate à ameaça de destruição ambiental do planeta.
Vinte anos depois daquela Cúpula da Terra, em meio a uma crise estrutural do modelo civilizatório ocidental, as palavras de Fidel ainda ressoam entre os corredores do Riocentro, o luxuoso centro de convenções da Barra da Tijuca, onde se celebrará a Cúpula das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, Rio+20.
Os objetivos desta nova conferência são alcançar um novo acordo político em torno do desenvolvimento sustentável, avaliando o progresso alcançado até aqui e as lacunas na aplicação dos acordos que foram adotados desde então. A conferência estará centrada em dois temas principais – a economia verde ou ecológica, com vistas à sustentabilidade e erradicação da pobreza, e a criação de um marco institucional para o desenvolvimento sustentável. Tudo isso em sintonia com um ambicioso chamado da ONU aos Estados e à sociedade civil em geral, para assentar as bases de um mundo de prosperidade, paz e sustentabilidade.
A Rio+20 ocorrerá oficialmente entre 20 e 22 de junho, período em que os chefes de Estado e governo dos diferentes países que conformam a ONU chegará ao Rio para as sessões plenárias e a busca de um acordo. No entanto, já em 13 de junho as equipes negociadoras de cada governo começarão a última rodada de negociações para preparar um documento que seus respectivos presidentes deverão assinar. O movimento segue-se a três rodadas de negociações prévias, realizadas em Nova Iorque.
As equipes de negociação trabalham em torno de um documento intitulado “O futuro que queremos – Rascunho Zero do documento da Rio+20”. Este texto, que foi aberto há meses, como uma compilação de diferentes propostas por parte dos Estados, tinha então 300 páginas. São agora 82, integralmente em inglês, a partir de parágrafos que vão sendo consensuados e uma série de ideias entre colchetes. Isso indica que ainda estão sujeitas a debates, segundo a praxe dos documentos de negociação na ONU.
O Rascunho Zero (Zero Draft) tem estrutura dividida em cinco pontos principais. A primeira parte inclui basicamente um preâmbulo, onde se define a visão compartilhada pelos distintos membros das Nações Unidas. Um segundo ponto trata da renovação do compromisso político. Nele, reafirmam-se os princípios de Rio-92, avaliam-se os progressos e déficits na construção do desenvolvimento sustentável e se apontam os principais grupos implicados, dos povos indígenas aos sindicatos ou à comunidade científica. A terceira parte do documento está reservada a desenvolver o papel da economia verde no contexto do desenvolvimento sustentável e da erradicação da pobreza. É o ponto principal e mais conflitivo de todos, pois procura apresentar a economia verde como novo paradigma do desenvolvimento sustentável. Um quarto capítulo traz a definição do marco institucional para o desenvolvimento sustentável, e finalmente a última parte do documento de negociação é dedicada às ações e seu acompanhamento, com propostas de acordo em torno de temas como segurança alimentar, água, energia, mudanças climáticas, florestas e biodiversidade, educação ou igualdade de gêneros.
Na política de blocos inerente às negociações da ONU, podemos observar até o momento dois grupos principais: União Europeia por um lado, e G77 com China, por outro. O G77 é um grupo muito heterogêneo de países do Sul, ou seja, os que eram antigamente chamados de “terceiro mundo”, ou “em desenvolvimento”. Em seu interior, há diversos sub-blocos – como o da ALBA, o grupo africano, grupo de Estados insulares e grupo árabe. Há também potências emergentes dos BRICS, como Brasil e Índia.
Presidido em 2011 pela argentina Cristina Kirchner, e coordenado a partir deste ano pela Argélia, o G77 apresenta-se no Rio com um documento próprio de consenso, como base para negociações.
O texto do G77 + China propõe uma nova ordem econômica mundial, baseada nos princípios da equidade, soberania, interesses comuns, interdependência e cooperação entre os Estados. Também propõe uma nova arquitetura financeira internacional, por meio da reforma rápida e ambiciosa das instituições criadas pelos acordos de Bretton Woods (Banco Mundial e FMI), mudando suas estruturas de governo e enfrentando seu déficit democrático, com base numa plena e justa representação dos países do Sul. Requer a provisão de recursos financeiros e transferência tecnológica em favor destas nações, sem condicionalidades.
Também pede-se o reconhecimento e respeito aos diferentes modelos de desenvolvimento, afirmando que as estratégias de crescimento econômico baseadas no mercado são insuficientes e não garantem, nem asseguram, um crescimento econômico equitativo – nem resolvem os problemas de pobreza, saúde, educação, pleno emprego, redução de desigualdades e promoção do desenvolvimento social e da inclusão.
Propõe-se uma mudança nos padrões de produção e consumo, denunciando que os recursos naturais são limitados e que os países desenvolvidos os usaram excessivamente. A partir daí, reconhece-se a importância da água como direito humano e o princípio da segurança alimentar – e se reivindica um desenvolvimento sustentável com enfoque holístico e em harmonia com a natureza, segundo proposta do Estado Plurinacional da Bolívia. Esta reivindicação foi também incorporada ao Rascunho Zero oficial, cujo parágrafo 33 diz textualmente: “Somos conscientes de que o planeta Terra e seu ecossistema são nossa casa e que 'Mãe Terra' é uma expressão comum a uma série de países e regiões. Estamos convencidos de que, para alcançar um equilíbrio justo entre o econômico, as necessidades sociais e o meio ambiente de gerações presentes e futuras, é necessário promover a harmonia com a natureza”.
Na mesma linha, um dos objetivos da Bolívia e da ALBA na Rio+20 será recolher as propostas da Conferência Mundial dos Povos sobre Mudança Climática realizada em Tiquipaya (Bolívia), formulando uma proposta de Direitos da Mãe Terra.
Diante destas propostas, a posição da União Europeia (UE) é contundente e reflexo fiel do modelo neoliberal a que o “velho continente” segue amarrado. A UE conceitualiza a natureza como “capital natural”, como “estoque de recursos naturais”, reguláveis por meio do mercado. Ou seja, estaríamos diante de uma segunda fase do neoliberalismo, mais radicalizada. Depois de ter feito retroceder o Estado, privatizando setores estratégicos, sugere-se criar mercados onde até agora não existiam. Já não parece ser suficiente gerar mais-valia vendendo a madeira das floretas; cria-se além disso um novo mercado, em que se venda a capacidade de absorção de dióxido de carbono por estas mesmas selvas. A partir daí, abre-se caminho para a financeirização da natureza, para especular e criar novos mercados imateriais.
A União Europeia propõem, então, um pacote de metas e indicadores focados no meio ambiente. A pretexto da redução de emissões e eficiência no uso de recursos naturais, deixa de lado as necessidades sociais e econômicas dos países em desenvolvimento.
São muitos os temas a desenvolver na Rio+20, e cada um deles poderia ser tratado em dezenas de páginas, mas o tema central da conferência será como construir uma visão de desenvolvimento não-baseada no capitalismo, que vá além dos parâmetros de crescimento deste sistema. Que inclua, por exemplo, alcançar um desenvolvimento integral e solidário, baseado na complementaridade do direito dos povos ao desenvolvimento e dos direitos da Mãe Terra. Tais direitos deveriam ser efetivados de maneira integral, interdependente, complementar e em apoio mútuo. Em outras palavras, um direito não pode se realizar-se sem ou outros, nem estar acima dos demais. Sua plena consolidação requer interação entre eles.
De qualquer forma, não há dúvidas de que estamos vivendo (e sofrendo) os limites de um modelo civilizatório insustentável. Os povos do Sul recuperaram sua dignidade e o Norte já não pode continuar crescendo às custas de explorá-los. A Pachamama já nos mostra que não pode seguir explorada, indefinida e incontroladamente, como se fez até agora. Já enxergamos os limites planetários do sistema de acumulação capitalista. A Rio+20 é uma ocasião histórica para colocar sobre a debates indispensáveis, e chegar a consensos na busca de soluções.
Retomando as palavras de Fidel Castro, no discurso diante do plenário da Cúpula da Terra, em 1992: “Cessem os egoísmos, cessem os hegemonismos, cessem a insensibilidade, a irresponsabilidade e o engano. Amanhã será muito tarde para o que deveríamos ter feito há muito”.
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* Katu Arkonada, que está no Rio de Janeiro, integra o grupo de negociadores do Estado Plurinacional da Bolívia na Rio+20