Escrito en
NOTÍCIAS
el
Não imagino maior gesto de generosidade no amor aos livros que fazer cópias e oferecê-las, gratuitamente, para a leitura do outro. Não imagino maior homenagem a um autor que a reprodução e a circulação livres e desimpedidas dos seus escritos por iniciativa de um leitor que daí não retira nenhum ganho material. Não imagino um leitor de verdade, alguém de real intimidade com os textos, que não tenha, jamais, consumido uma cópia “não autorizada” de um livro ou de parte dele – se esse leitor existe, eu nunca o vi. Os que eu conheço, desde sempre, leem textos de várias formas – comprados, emprestados de amigos ou de bibliotecas, xerocados, digitalizados – e o consumo de uma forma não é excludente em relação a outra.
A coleção de leituras de um verdadeiro leitor não é nunca um jogo de soma zero: compras, cópias impressas, empréstimos e cópias digitais coexistem e se reforçam. Mas os patrimonialistas dos direitos autorais, cuja atuação não supõe a defesa dos autores, e sim a preservação de monopólios de intermediários, querem nos impor uma ordem de coisas dentro da qual fazer cópia de um livro é crime, xerocar um capítulo é crime, digitalizar um romance é crime.
Se é assim, que fique claro: todos nós, leitores, somos criminosos. Não há um único que não seja.
A máfia dos direitos autorais quer nos convencer de que o autor está “perdendo” ou “sendo roubado” quando se copia seu trabalho, embora não haja um único estudo sobre a face da Terra que demonstre que a produção de cópias, impressas ou digitais, tenha efeito negativo sobre a venda de livros, e todas as evidências apontem justamente para o contrário: quanto mais uma obra circula, mesmo que em cópias “não autorizadas”, mais ela tenderá a vender.
O meu Alegorias da Derrota: A Ficção Pós-Ditatorial e o Trabalho do Luto na América Latina é um exemplo: ele foi publicado em 2003 pela Editora UFMG, vendeu, durante uns três anos, a mixaria que se espera que venda um livro de crítica literária especializada, deu a natural decaída e, a partir da circulação de cópias piratas na internet, em 2007-08, subiu a níveis de venda que não havia tido sequer na época do lançamento, até se esgotar por completo em 2010. Exatamente porque haviam visto a cópia digitalizada na internet, muitos terminaram comprando o livro anos depois do lançamento (entenda-se, 'muitos' aqui quer dizer 'para padrões de um livro de crítica literária, de autor desconhecido'). A pirataria ressuscitou o livro, deu-lhe uma sobrevida.
Fico grato à garotada que faz cópias de meus livros. Como sou leitor, e não cão de guarda de um monopólio, sei que um leitor só copiará, para passar adiante, algo que lhe falou de forma pungente ou, pelo menos, algo que ele acredita poder fazê-lo a alguém. É evidente que deve ser, para um autor, um orgulho ser pirateado.
Chegando a falar em nome de editoras que não são filiadas a ela, a ABDR, que tem pouco a ver com a leitura e muito a ver com capitalização de frutos do trabalho alheio, decidiu processar o blog "Livros de humanas", o maior espaço de compartilhamento de livros de literatura e de ciências humanas do Brasil. O blog surgiu do esforço abnegado de um estudante da USP que, diante da impossibilidade de adquirir todos os livros necessários para o curso de Letras, passou a formar uma biblioteca digital que serviu enormemente a milhares de leitores – que também, por sua vez, contribuíam com o esforço enviando arquivos ao blog. Incontáveis brasileiros leram livros que não teriam como ler de outra forma graças ao “Livros de humanas”. Basta saber qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, sobre o mundo dos livros, para ter a absoluta certeza de que nenhum livro digitalizado ali teve suas vendas prejudicadas pelo blog.
A ABDR, autora do processo, movido inicialmente em nome das Editoras Contexto e Forense, quer destruir judicialmente e extorquir milhões de reais desse esforço abnegado e fraterno, desse gesto de cidadania por excelência, desse incentivo à formação de leitores. Isso ocorre, lembremos, num país em que pouquíssimos leem e o sintagma “incentivo à leitura” é regularmente vomitado por gente que nada faz por ela, e que portanto tende a pensar, por sentimento de culpa ou fetichismo, que as pessoas devem, ou têm obrigação, de ler. Não, elas não têm. Mas, quando resolvem fazê-lo, merecem ser deixadas em paz.
Há um grande precedente que nos faz confiar que nenhuma leitura enviesada da lei de direitos autorais pode se sobrepor ao direito ao conhecimento, à leitura, à expressão e à livre circulação de ideias. Refiro-me à auspiciosa decisão da Justiça argentina, que absolveu o Prof. Horacio Potel, outro abnegado que disponibiliza textos de Derrida em espanhol no site "Derrida en castellano". O site chegou a ser fechado como consequência de um processo movido pela Câmara Argentina do Livro e pela Embaixada Francesa (que, evidentemente, nunca havia feito nem nunca fez, desde então, pela difusão da obra de Derrida, 1% do que fizera o Professor Potel). O site não tinha objetivo lucrativo e possibilitava que os estudantes argentinos tivessem acesso a uma obra capital do pensamento contemporâneo que chega ao país em edições caríssimas. A Justiça agiu corretamente e mandou a CAL e a Embaixada pastarem. O Derrida en Castellano está de novo no ar.
No caso argentino, o impacto criado pela mobilização na rede foi fundamental. Que não nos envergonhemos outra vez ante nossos vizinhos. Que a Justiça brasileira nos dê a decisão correta neste caso e o “Livros de humanas” possa voltar a funcionar. E que aqueles que falam em “democratização da mídia” não se omitam ante este primeiro grande ataque oligopólico à cultura do compartilhamento de livros na internet brasileira. A mobilização começou.