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No domingo, logo após a publicação do meu artigo na Folha de São Paulo em defesa do financiamento público de campanhas eleitorais, a simpaticíssima Helena Neviani chamou minha atenção a dois tuítes que aludiam a uma possível inconstitucionalidade da proposta: “Acho muito difícil o STF declarar constitucional uma lei ou emenda que proíba doações de pessoas físicas a partidos, candidatos e campanhas” e “Não quero ser cerceada em meu direito fundamental de doar o que é meu para quem eu quiser”. Já veterano de quase três décadas de debates sobre financiamento de campanhas eleitorais, incluindo-se aí várias discussões com profissionais do Direito, e não tendo jamais ouvido falar do direito de financiar partidos como um direito consagrado na Constituição, confesso que fiquei bastante cético ante a alusão a uma possível inconstitucionalidade da proposta. Mas, como não sou da área, achei que o melhor a fazer seria consultar uma equipe de juristas.
Nos últimos dois dias, este blogue consultou seis renomados profissionais do Direito sobre o aspecto jurídico da bagaça. Todos coincidem em que não há absolutamente nada de inconstitucional no financiamento exclusivamente público de campanhas eleitorais. Transcrevo e comento a seguir os argumentos oferecidos por eles. O primeiro apontou: “é evidente que não é absoluto o direito de 'doar o que é meu a quem eu quiser'. Você não pode, por exemplo, doar um carro a um juiz que o esteja julgando. Não há nada de inconstitucional em limitar ou proibir as doações de pessoas jurídicas, ou mesmo físicas, a campanhas eleitorais”.
Também foi oferecido um exemplo de particular persuasividade a mim, como profissional do magistério: “naturalmente não há nada de inconstitucional, por si só, em proibir doações em situações específicas. Você, como professor, tem não só o direito como, entendo eu, o dever ético de proibir que seus alunos lhe façam doações enquanto estão tendo sua performance acadêmica avaliada por você”.
Um grande juiz brasileiro me ofereceu a seguinte avaliação: “Idelber, Não acho que exista um 'direito a doar'. Ao contrário, o financiamento de campanha eleitoral é um ato regrado, controlado, não fruto da livre iniciativa. Mesmo no sistema atual, há uma série de restrições e limites. Nada impede que eles se aprofundem –principalmente porque seguiriam o princípio básico do processo eleitoral de garantir a igualdade, evitando o abuso do poder econômico. Em resumo, ao que penso, não há nada inconstitucional em estabelecer a exclusividade do financiamento eleitoral público. No Brasil, com certeza, a questão –que talvez tivesse algum apelo nos EUA- não seria seriamente ventilada.”
Outro jurista me respondeu com vagar: “Não vejo nada de inconstitucional na proposta. Essa questão do financiamento tem uma natureza muito diferente do direito de votar, de ser candidato, e dos direitos de associação e de reunião. No sistema da constituição brasileira, na previsão e delimitação dos direitos políticos, não está incluído um suposto direito a financiar partidos, vide o artigo 14 do Capítulo IV, "Dos direitos políticos", do Título II da Constituição”. Também importante é que a Constituição não garante aos partidos políticos o direito de serem financiados por particulares, e sim apenas o acesso aos recursos do Fundo Partidário, de acordo com o parágrafo terceiro do artigo 17”.
Fazendo oportuna referência ao caput do artigo 5º da Carta Magna, o mesmo jurista observa:
Mesmo se pensamos em um filósofo liberal como Rawls, não poderemos afirmar que a livre "doação a um partido político" seja um direito político fundamental do cidadão. Muito pelo contrário, permitir essa livre doação é uma ameaça à democracia, pois a igualdade (um direito que a Constituição brasileira reconhece como fundamental já no caput do artigo 5º) entre os cidadãos é, dessa forma, sabotada pelo poder econômico: os cidadãos com maior capacidade de financiamento terão mais influência política do que os outros, o que fere frontalmente a igualdade da cidadania (um dos princípios fundamentais da justiça, segundo Rawls e - repito - um direito fundamental, com natureza de cláusula pétrea, de acordo com a Constituição da República). O mesmo argumento vale para a doação de empresas - ademais, as pessoas jurídicas não têm direitos políticos... Pode-se afirmar, portanto, que um sistema de financiamento público dos partidos é que seria o mais compatível com uma garantia eficaz da igualdade entre os cidadãos (no plano dos direitos políticos), limitando a influência do poder econômico, que não é democrático, e sim plutocrático.”
O jurista concluiu com referência ao artigo “Rawls e a prioridade das liberdades básicas", publicado na Revista Controvérsia, da Unisinos:
[...] formar um mínimo social e acreditar que isso bastaria para assegurar um procedimento democrático justo não é tido por Rawls como suficiente para assegurar que todas as pessoas exerçam suas liberdades e legitimem suas regras jurídicas. Logo, é indispensável atribuir-se valor especial às liberdades políticas, notadamente porque, nas sociedades modernas, elas são influenciadas pelo poder social e econômico que interfere, por exemplo, na confecção da legislação e na escolha de políticas públicas, estimulando mais uma forma de vida que outra, a atuação econômica de uma classe econômica mais que a de outra, fazendo com que aqueles que não foram favorecidos com as escolhas políticas sejam desestimulados ou até impedidos de sustentarem sua concepção de bem e sua liberdade de consciência.
Dessa maneira, assegurando-se materialmente o valor equitativo das liberdades políticas, por exemplo, pelo financiamento público de campanha ou pela limitação do financiamento privado aos partidos políticos, ter-se-ia um primeiro passo para que o processo democrático não padecesse do que Habermas denominou de “[...] paradoxo do surgimento da legitimidade a partir da legalidade” (Habermas, 2003, p. 115).
Mesmo nas recentes declarações de Gilmar Mendes e Dias Toffoli contra o financiamento público (alguém se surpreende?), só encontramos referências ao sofisma de que “o financiamento público empurra os partidos para a ilegalidade e o caixa dois” (como se o bafômetro empurrasse os motoristas ao alcoolismo). Não encontramos qualquer referência a um suposto entendimento de que ele seria inconstitucional. Algo me diz que se houvesse um farrapo de possibilidade de que a Carta Magna assim fosse entendida, Gilmar Mendes não teria hesitado em usá-lo.
Considero, pois, a não ser que apareça melhor argumentação, definitivamente demolida a hipótese de inconstitucionalidade. A discussão é política e no campo político ela deve ser travada.
PS: Agradeço penhoradamente aos juristas consultados.