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Uma das manifestantes que está desde o início da ocupação em Wall Street conta sobre o cotidiano de quem lá está e as perspectivas daqueles que pensam que mudar o mundo não é somente uma utopia
Por Vanessa Zetler, de Nova Iorque
Quando recebi por e-mail a notícia da campanha criada pelos Adbusters [organização de ativismo social sem fins lucrativos, de fundamentação anticonsumista baseada em Vancouver, Canadá] para ocupar a Wall Street, sabia que algo grande estava por acontecer. Todo o marasmo político que os Estados Unidos viviam há décadas, principalmente após o 11 de Setembro, não poderia continuar, especialmente depois da crise de 2008 e do episódio envolvendo a última elevação do teto da dívida americana em agosto. Acreditei que estava vivendo em uma panela de pressão, e que ela iria estourar a qualquer momento. Foi o que aconteceu. Esse estouro, porém, não aconteceu de uma vez só, mas por meio de um processo longo que apenas agora, definitivamente, impacta o mundo inteiro.
No final de julho, um grupo de indivíduos começou a se reunir no Tompkins Square Park, no boêmio bairro East Village, em Manhattan. Essas pessoas não se conheciam, e foi graças à internet e às redes sociais que nos encontramos. Acreditamos, desde o início, que a ocupação tinha que existir. Era possível perceber que sua força de vontade e inspiração vinham claramente dos recentes acontecimentos da Primavera Árabe e do verão europeu. Egito, Tunísia, Espanha, Grécia, e também o Chile e sua luta dos estudantes se transformaram em referências que nos deram a capacidade de acreditar, ou melhor, de nos lembrar, de que o povo unido pode sim, transformar a realidade.
Éramos por volta de 50 pessoas e nos reunimos naquele parque todos os fins de semana até o dia 17 de setembro. Neste processo, criamos os comitês Tático, Comida, Internet, Legal e Artes e Cultura, do qual eu fazia parte. Traçamos planos estratégicos para a potencial ocupação na própria Wall Street, e planos alternativos contando com a possibilidade de que não permitiriam que nos instalássemos ali. A expectativa era muito grande, e a excitação para o grande dia nos inspirava cada dia mais. Não tínhamos certeza nenhuma do que nos esperava, mas tínhamos certeza da importância desse ato, e de que enfrentaríamos unidos o que quer que fosse.
No dia 17 de setembro, por volta da uma da tarde, éramos por volta de 2 mil pessoas reunidas no Bowling Green, praça onde se localiza o famoso Bull, símbolo de Wall Street. Tanto o Bull como a Wall Street estavam cercados com grades de ferro e por um intenso policiamento. O comitê tático passou então a informação de que marcharíamos até o Zuccotti Park, uma praça localizada a dois quarteirões da Wall Street, hoje em dia rebatizada por nós como Liberty Plaza, Praça da Liberdade, onde estamos instalados até hoje.
Ao chegarmos na praça, nos dividimos em pequenos grupos para realizar assembleias simultâneas. O comitê de comida trouxe toneladas de pina butter (pasta de amendoim, muito popular entre os americanos) e bagels (pão em formato de rosca) e rapidamente começou a se instalar ali a nossa cozinha. No final do dia, realizamos uma grande assembleia para decidir o que faríamos a seguir. Foi decidido, por consenso, que dormiríamos na praça. Dezenas de pizzas começaram a ser entregues como doações enviadas de todas as partes do mundo. Por volta de 200 pessoas passaram a primeira noite na Liberty Plaza. Uma noite fria, mas que nos enchia de satisfação pelo incrível feito que havíamos apenas começado.
Entre as pessoas ali, estava Quacy Cayasso, que tem 20 anos de idade e nasceu em Georgetown, capital da Guiana. Chegou ao local da ocupação no dia 19 de setembro, e desde então, trabalha no centro de mídia da Liberty Plaza. “Sou um técnico em informática, e quando vi os computadores na praça, falei: é ali que eu fico!” Quacy ressalta a pluralidade do OWS. “Não posso dizer o que é o movimento, porque todo mundo tem sua própria opinião sobre isso. Pessoalmente, estou muito preocupado com a educação e acho que todo o sistema educacional desse país tem de ser reconstruído. Também acho que a ganância corporativa é um grande mal, e estou aqui para dizer 'não', eles não podem passar por cima dos meus direitos. Acho que a beleza disso aqui é que cada um pode dizer por que veio”. Quacy é esperançoso sobre o futuro, para ele “este movimento significa uma mudança que vai ficar para os nossos filhos e netos”.
Quem também chegou logo no início da ocupação foi Kanaska Carter, 26 anos. Ela é natural de Deer Lake, no Canadá, estava em Nova Iorque de viagem quando ficou sabendo da ocupação uma noite antes, por meio do Facebook. “Acho que minha vida inteira me guiou para este momento”, acredita. “Esse movimento é importante porque está dando voz às pessoas. Em vez de ter comunidades criadas pelo governo, as próprias pessoas criam isso para si.” Além do aspecto político, ela salienta a importância do espírito de grupo. “Aqui temos um senso de comunidade e de família que é muito importante”.
Nos dias que se seguiram, tivemos uma movimentação bem pequena de gente na praça, mas a nossa instalação aconteceu rapidamente. Logo, já tínhamos um gerador de energia, internet, computadores, e a cozinha já cada vez mais equipada. Vimos a multiplicação autônoma de iniciativas para formar os comitês de conforto, higiene, biblioteca, informação, ação direta, entre tantos outros. As duas primeiras semanas foram marcadas por tentativas da NYPD, a polícia de Nova Iorque, de nos tirar da praça. Pessoas foram presas por usar o megafone, outras por erguer barracas para se protegerem da chuva, outras até por escrever no chão com giz. O companheirismo entre nós apenas cresceu com essas tentativas, e, à medida que fomos nos adaptando e negociando com a polícia, a praça foi se tornando cada vez mais um local seguro e confortável para todos aqueles que a procuravam. O sentimento de solidariedade entre todos nós se tornou mais forte do que qualquer tentativa de nos desestabilizar.
Debra Slattery, por sua vez, tem 46 anos e faz parte da ocupação desde o primeiro dia. Desde então, tem trabalhado como voluntária no comitê legal da ocupação, contatando advogados e negociando com a polícia. Ela diz que foram muitos os motivos que a levaram a participar do movimento. “Estou cansada de vê-los (o governo) fazendo a mesma coisa sempre, de novo e de novo, e esperando resultados diferentes. Não acho que é loucura deles, acho que é falta de compaixão. Falam que o sistema está quebrado. Na minha opinião, o sistema nunca funcionou a não ser como uma ideia”, analisa. Debra está preocupada com o futuro de sua família: “Eu e meus filhos somos graduados em boas universidades, mas não encontramos emprego”. Sobre o futuro do OWS, ela reflete: “É um trabalho em progresso. Acho que essa democracia participativa pode funcionar, estamos vendo como isso vai se transformar”.
Quando esse texto foi escrito, em meados de outubro, a Liberty Plaza tinha intensa movimentação todos os dias da semana, a qualquer hora do dia. O clima na praça é de verdadeira alegria, trabalho intenso e liberdade para falar o que você estiver pensando. A vontade de se conhecer e criar ajuda mútua entre todos é constante, e não há ninguém que passe por ali sem se engajar em alguma boa conversa. Para dormir, porém, são necessários tempo e paciência até encontrar um lugar, pois somos muitos os dispostos a passar a noite ali, não importa quanto frio esteja, e mesmo se chover, dormimos com toldos em cima de nós, já que não podemos erguer barracas. Ao redor da praça, se encontram cartazes feitos principalmente de papelão ou de caixas de pizza, com dizeres de todos os tipos. Entre demandas específicas como, por exemplo, o fim da corporate personhood (hiperlink: Em 1886, a Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu as empresas como detentoras dos mesmos direitos de pessoas naturais) – a lei dos EUA que trata as empresas como pessoas jurídicas – também se encontram outros cartazes mais reflexivos como “O mundo tem o suficiente para a necessidade de todos, mas não para a ganância de todos”, e também temos aqueles com dizeres mais simpáticos, coisas como “Você está muito bonito hoje”.
A mídia, a polícia e a praça
Durante semanas o movimento foi praticamente ignorado pela mídia corporativa. O pouco que se falou sobre o assunto se limitou a uma análise rasa e superficial. O fato de que somos um movimento sem uma demanda específica foi prato cheio para a grande mídia nos classificar como hippies, mimados, sem conhecimento ou sem esclarecimento. A insistência em nos associar com o formato repetitivo e conhecido de se protestar, com uma demanda e uma data para acabar, boicotou qualquer possibilidade de análise do potencial inovador desse movimento e desse momento histórico. Claro que isso já era esperado, e sabemos a importância de o povo fazer e ser a sua própria mídia. Contamos com a tecnologia hoje acessível ao grande público e as redes sociais para divulgar a nossa posição.
O Twitter conectou a OWS com o mundo inteiro, todos os dias também publicamos um grande número de vídeos no YouTube, que rapidamente atingem um alto número de visualizações. Um dos mais acessados mostra um policial usando spray de pimenta em mulheres manifestantes, tendo mais de 679.427 visualizações até meados de outubro. Temos desde o começo um canal ao vivo, o Global Revolution, que divulga 24 horas tudo o que está acontecendo na praça. Todas as informações sempre estiveram acessíveis para qualquer um que se interessasse pelo movimento, por meio das várias organizações de mídias independentes que estavam fazendo a nossa cobertura. Para atingir a grande mídia, porém, contamos com uma ajuda inesperada. Sob o comando do prefeito de Nova Iorque, o mega empresário e oitavo homem mais rico dos Estados Unidos, Michael Bloomberg, a polícia da cidade reprimiu com violência as primeiras grandes marchas organizadas pelo movimento, o que repercutiu em todo o mundo.
É sempre bom ressaltar que Occupy Wall Street (OWS) é marcado por sua ação pacífica. Escolhemos a tática da desobediência civil não violenta como nossa mais poderosa arma. A violência, sempre que ocorreu, veio da parte da polícia. A primeira de suas demonstrações ocorreu no final de semana após o 17 de setembro, quando mais de mil pessoas marcharam da Liberty Plaza até a Union Square, uma praça bem movimentada e com localização central em Manhattan. A polícia realizou vários bloqueios no caminho até a praça, e agiu de maneira bem violenta, desmembrando a marcha, bloqueando grupos com as redes laranjas, usando spray de pimenta, violência física e realizando detenções aleatórias e em massa. Cerca de cem pessoas foram presas nessa tarde. No dia seguinte, a mídia noticiou as detenções e a brutalidade da polícia, mas pouco ou quase nada foi falado sobre o movimento.
No sábado seguinte, dia 1º de outubro, foi a vez da marcha pela ponte do Brooklyn. Nesta marcha, o objetivo era cruzar a ponte pelo passeio de pedestres, mas algumas pessoas decidiram passar pela via dos carros como forma de protesto. Os policiais não apenas não fizeram nada para evitar isso, como ainda ajudaram a conduzir a marcha para o meio da ponte. Quando já estávamos com todas as pessoas dentro da ponte, a polícia fechou os dois lados e prendeu 700 manifestantes, contando com ajuda de ônibus para levar os detentos para a delegacia. Dessa vez, a grande mídia foi obrigada a falar sobre o Occupy Wall Street. A tática do prefeito Bloomberg para nos enfraquecer acabou funcionando de maneira oposta, e foi depois deste evento que passamos a ter um imenso apoio não apenas de cidadãos de Nova Iorque como do mundo inteiro. O ativista Hiro, de 21 anos de idade, já foi preso três vezes em atividades relacionadas ao OWS. “É uma forma de opressão, eu nunca fiz nada de errado para ser preso”. Ele conta que na primeira detenção, dia 24 de setembro, ficou preso durante 26 horas: “Não é uma experiência legal. Eu não sabia de nada o que estava acontecendo, mas quando eu fui solto e voltei para a praça, ela estava com o dobro de gente, e me receberam muito bem.” Hiro concorda que as prisões trouxeram atenção para o movimento “A gente só cresce com isso. Os vídeos com a brutalidade da polícia se tornam virais, e eles acabam colaborando com a nossa campanha publicitária”.
Outro momento que também significou uma guinada na divulgação do OWS foi a marcha de solidariedade que contou com a presença maciça dos sindicatos de trabalhadores de Nova Iorque e dos estudantes das principais universidades. Esta marcha ocorreu no dia 5 de outubro, uma ensolarada quarta-feira, e reuniu mais de 30 mil pessoas em frente à prefeitura da cidade.
O cotidiano na Liberty Plaza
Quem chega na Liberty Plaza pela primeira vez se impressiona com a estrutura e energia vibrante que encontra ali. Apesar disso, porém, parece que a sensação é sempre a de estar um pouco perdido. “Quem é o representante disso aqui?”, geralmente me perguntam. A resposta sempre é dada com a explicação orgulhosa de que somos um movimento sem líderes, e de que eu ou qualquer outra pessoa envolvida pode nos representar. As informações se concentram na mesa onde se lê escrito Info, e temos um quadro com a programação do dia sempre atualizada, além do nosso jornal, o The Occupied Wall Street Journal, acessível em inglês e em espanhol.
Quem passa a noite na praça sempre concorda que acordar na Liberty é uma sensação sem precedentes. É acordar no olho do furacão, mas estar em paz ao mesmo tempo por saber que todas as outras pessoas que ali habitam têm um motivo muito forte para ali estar. Também é acordar com milhares de coisas acontecendo ao seu redor ao mesmo tempo: câmeras tirando sua foto enquanto você ainda se espreguiça, grupos de trabalho que já estão se organizando ali do seu lado, algumas pessoas tocando música, outras fazendo ioga... O café da manhã dura até o meio dia. Com cereais, frutas e pães para todos os gostos. Os grupos de trabalho e grupos temáticos de discussão, que já se contam às dezenas, se reúnem ao longo do dia. Além das atividades que organizamos, recebemos cada vez mais as visitas de personalidades ilustres, como o filósofo Slavoj Žižek, a escritora Naomi Klein, o músico Tom Morello da banda Rage Against the Machine, e o ativista político Jesse Jackson, entre tantos outros. O pico de movimentação na praça se dá às sete da noite, quando chega o momento de realizar a assembleia geral, para a qual trazemos as questões debatidas nos grupos de trabalho, fazemos anúncios e abrimos espaço para quem quiser falar ou propor qualquer ideia.
O grito de guerra mais usado pelos manifestantes quando marcham é o refrão que diz “Esse é o jeito que a democracia se parece”. Este mote reflete o grito mais agudo que vem deste movimento: o da busca por democracia de verdade. A democracia representativa já não atende as demandas do agora batizado “99%” da população, e essas pessoas decidiram fazer com suas próprias mãos a sua própria forma de democracia. Clamando pela redistribuição da riqueza concentrada com o 1% da população, o Occupy Wall Street representa não apenas os estadunidenses, mas o mundo inteiro que por tempo demais viveu sufocado sob o poder desta forma de organização que nunca atendeu as necessidades globais por um mundo mais justo.
“Achava que seria apenas mais um protesto comum, mas não é. Isso não é uma manifestação tradicional, nós criamos uma nova comunidade aqui”, acredita a jornalista Emily Crockett, que veio de Washington para o OWS. “Nós estamos 'ocupando' a opinião pública, estamos mudando o curso do debate nacional. Se você vir quais palavras mais circulavam na mídia antes e quais circulam agora, depois da ocupação, verá a diferença. Agora falamos muito mais sobre os reais problemas do país”, garante. Para Emily, o futuro da ocupação “está sendo escrito a cada dia. Cada dia aqui nós cometemos erros e enfrentamos problemas, e a cada dia criamos novas soluções para eles”.
A consciência social que se vê entre os ocupantes da Liberty Plaza é cada vez maior. As noções de solidariedade e autonomia entre nós, os ocupantes, é o que nos mantém ali até hoje. Em uma cidade tão marcada pela apatia política e individualismo como Nova Iorque, a Liberty Plaza se transformou em uma esfera atemporal de companheirismo e humanização de um espaço. Sabemos cada vez mais que este momento político nunca foi apenas norte-americano, pois veio da inspiração do mundo árabe, e agora já atravessou as fronteiras dos EUA e vem inspirando tantas outras ocupações ao redor do mundo. A força de Occupy Wall Street está em mostrar que sabemos a responsabilidade que temos como atores políticos, em criar uma nova consciência, mais humana e comunitária. Como lembra a canadense Kanaska, trata-se de uma perspectiva de mudança de vida. Da vida dela e de muitas outras pessoas. “As pessoas, quando vêm para cá, nunca mais querem ir embora. Eu me pergunto: por que isso não poderia durar para sempre?
Vanessa Zettler, 23 anos, é brasileira e mora em Nova Iorque há um ano. Frequenta seu último ano de graduação na The New School for General Studies.