REDES TÓXICAS

Misoginia lucrativa: como a ‘machosfera’ monetiza o ódio no YouTube

Com conteúdos que desumanizam mulheres, canais acumulam bilhões de visualizações e transformam discursos tóxicos em uma indústria altamente rentável

Misoginia lucrativa: como a ‘machosfera’ monetiza o ódio no YouTube.Com conteúdos que desumanizam mulheres, canais acumulam bilhões de visualizações e transformam discursos tóxicos em uma indústria altamente rentável.Créditos: Reprodução NETLab/UFRJ
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A disseminação de discursos misóginos no ambiente digital se tornou uma atividade altamente lucrativa. Canais da chamada machosfera, que promovem ataques à igualdade de gênero e desumanizam mulheres, acumulam bilhões de visualizações enquanto geram receitas entre R$ 69 mil e R$ 71 mil por meio de e-books, cursos, consultorias e doações via Super Chat.

Além de lucrar com a toxicidade, esses criadores utilizam estratégias sofisticadas de monetização, ampliando sua influência e reforçando estereótipos em um ecossistema digital pouco regulado.

É o que mostra o relatório "Aprenda a evitar ‘este tipo’ de mulher: estratégias discursivas e monetização da misoginia no YouTube”, do Observatório da Indústria da Desinformação e Violência de Gênero nas Plataformas Digitais, produzido pelo NetLab da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

O levantamento revelou a amplitude e a lucratividade de conteúdos misóginos no YouTube brasileiro a partir da análise de mais de 76 mil vídeos publicados em 7.812 canais entre 2018 e 2024.

Crescimento de conteúdos misóginos

A pesquisa mostrou que o número de vídeos na machosfera aumentou significativamente nos últimos anos, especialmente a partir de 2022. Os conteúdos analisados, que somam 4,1 bilhões de visualizações e 23 milhões de comentários, promovem discursos de dominação masculina, aversão às mulheres e ataques a direitos como a Lei Maria da Penha.

Monetização do ódio

A pesquisa revelou que 80% dos canais com conteúdos misóginos utilizam estratégias de monetização. Recursos como anúncios, Super Chat, doações via PIX e venda de produtos e serviços geram receitas consideráveis, destacando como o discurso de ódio se tornou um produto lucrativo no YouTube.

Subculturas da machosfera

O relatório do NetLab/UFRJ detalha como a machosfera no YouTube brasileiro é composta por subculturas específicas, cada uma com suas particularidades ideológicas e estratégias discursivas para perpetuar discursos misóginos.

Essas subculturas incluem Red Pill, MGTOW (Homens Seguindo Seu Próprio Caminho, em português) e Pick Up Artists (PUA), além de outras vertentes menores, que juntas constroem um ecossistema tóxico e amplamente monetizado.

Red Pill: O "Despertar" Masculino

Inspirada pelo conceito do filme Matrix, a comunidade Red Pill promove a ideia de que os homens precisam "despertar" para uma suposta realidade onde as mulheres seriam manipuladoras e os homens, vítimas de sistemas feministas e progressistas.

Características principais

  • Ataques às mulheres: A narrativa enfatiza que mulheres são guiadas por interesses egoístas e manipulatórios.
     
  • Desprezo ao feminismo: O feminismo é visto como uma ameaça à ordem social, responsável por "destruir" papéis tradicionais de gênero.
     
  • Disseminação de teorias conspiratórias: Afirmações sobre um "controle feminino" da sociedade são comuns, muitas vezes sem embasamento.
     
  • Retórica pseudocientífica: Argumentos são embasados em estatísticas manipuladas e estudos distorcidos para legitimar o discurso.

MGTOW O Isolamento

Do inglês Men Going Their Own Way (MGTOW - Homens Seguindo Seu Próprio Caminho, em tradução livre), essa subcultura prega que os homens devem evitar relacionamentos com mulheres e, em alguns casos, se afastar completamente da convivência com elas. A justificativa é que mulheres representariam riscos emocionais, financeiros e sociais para os homens.

Características principais

  • Rejeição total de relacionamentos: Relacionamentos são descritos como desvantajosos para os homens, especialmente em termos financeiros e emocionais.
     
  • Idealização da autossuficiência: A independência masculina é exaltada como o objetivo máximo.
     
  • Discurso de vitimização: Mulheres são frequentemente apresentadas como aproveitadoras ou manipuladoras, reforçando a visão de que os homens estão sob constante ataque.
     
  • Conexão internacional: A filosofia MGTOW tem raízes em comunidades internacionais e, no Brasil, adapta seu discurso ao contexto local.

Pick Up Artists (PUA): A Sedução como Jogo

O movimento dos Pick Up Artists (PUA) é focado em ensinar "técnicas de sedução" para os homens, tratando relacionamentos como um jogo de manipulação e objetificação das mulheres.

Características principais

  • Objetificação de mulheres: Mulheres são retratadas como "prêmios" que podem ser conquistados com técnicas específicas.
     
  • Cursos e workshops: A monetização é central, com a venda de conteúdos e treinamentos que prometem ensinar habilidades para "dominar" a dinâmica de atração.
     
  • Uso de humor e ironia: As mensagens frequentemente mascaram sua gravidade com um tom jocoso, dificultando a identificação como discurso prejudicial.
     
  • Narrativa meritocrática: A habilidade de atrair mulheres é descrita como um indicador de sucesso masculino.

Estratégias Comuns às Subculturas

Embora cada subcultura tenha sua própria identidade, elas compartilham estratégias para disseminar seus discursos:

  • Desumanização: Mulheres são frequentemente descritas como inferiores ou como fontes de problemas.
     
  • Retórica humorística: Humor é usado para atenuar a gravidade dos discursos, tornando-os mais palatáveis e menos questionados.
     
  • Atração de jovens: Muitos conteúdos são direcionados a adolescentes e jovens adultos, com linguagem simplificada e visual apelativo.
     
  • Comunidades fechadas: Grupos em redes sociais e fóruns atuam como espaços de reforço ideológico, criando câmaras de eco.

Impactos sociais

Essas subculturas não apenas promovem discursos de ódio, mas também perpetuam estereótipos de gênero, deslegitimam avanços feministas e criam um ambiente digital hostil para mulheres.

A lucratividade gerada pelo engajamento com esses conteúdos demonstra a necessidade urgente de regulamentação e ações educativas que mitiguem os impactos negativos dessa dinâmica.

Recomendações

O relatório propõe uma série de recomendações para combater a disseminação de conteúdo misógino no YouTube e em outras plataformas digitais.

  • Transparência e responsabilidade: Melhorar os mecanismos de transparência sobre a moderação de conteúdo e as políticas de monetização. Publicar relatórios detalhados sobre os canais removidos, as violações detectadas e as ações tomadas.
     
  • Incentivo à produção educativa: Promover e destacar conteúdos que incentivem a igualdade de gênero e sejam informativos, combatendo o destaque dado a conteúdos nocivos.
     
  • Aprimoramento tecnológico: Desenvolver ferramentas mais robustas para identificar e moderar conteúdos misóginos, reduzindo o impacto das câmaras de eco e da radicalização.

Políticas Públicas

  • Educação digital: Implementar campanhas de letramento midiático para conscientizar a sociedade sobre os riscos e impactos do consumo de conteúdos misóginos.
     
  • Foco no público jovem: Estabelecer programas específicos voltados para jovens homens, principais consumidores desses conteúdos, promovendo debates sobre igualdade de gênero.
     
  • Regulação de conteúdos nocivos: Estudar e implementar medidas legais para responsabilizar influenciadores e plataformas que lucram com discursos de ódio e discriminação.

Academia e Pesquisa

  • Exploração de algoritmos de recomendação: Analisar como os sistemas de recomendação do YouTube amplificam conteúdos nocivos.
     
  • Estudos interdisciplinares: Investigar os impactos da circulação de conteúdos misóginos em novas gerações e plataformas emergentes, como TikTok.

O estudo foi conduzido pelo NetLab, um laboratório de estudos sobre internet e redes sociais vinculado à UFRJ. A equipe multidisciplinar envolveu pesquisadores, técnicos e especialistas em direito digital, inteligência artificial e ciências sociais.

A pesquisa foi realizada em parceria com o Ministério das Mulheres e contou com a contribuição de organizações internacionais, universidades e grupos de estudo especializados em violência de gênero e direitos digitais.

Leia aqui o relatório completo.

 

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