Uma denúncia feita através das redes sociais dá conta de que mulheres vítimas de violência sexual estariam recebendo bíblias de pessoas uniformizadas dentro do Pérola Byington, hospital público em São Paulo (SP) que é referência na realização de abortos em casos admitidos por lei (gravidez decorrente de estupro, risco de vida à mulher ou gestação de feto anencéfalo).
A escritora Daniela Abade trouxe o caso à tona em seu Twitter nesta quarta-feira (18). "Eu já estava desconfiada que estavam armando alguma para o Pérola Byington. Uma amiga recebeu essa denúncia ontem: na fila do ultrassom de mulheres que sofreram violência sexual funcionárias uniformizadas distribuíam Bíblias junto com um absorvente", escreveu Daniela, junto a uma foto de uma conversa de aplicativo de mensagens.
Na conversa, uma mulher que foi vítima de violência sexual conta que estava na fila do ultrassom, no interior do hospital, quando funcionários uniformizados passaram distribuindo bíblias e absorventes a ela e a todas as outras mulheres que estavam na mesma fila.
Ofício
Ao receber a denúncia, a deputada federal Sâmia Bonfim (PSOL-SP) protocolou um ofício em que solicita a Luiz Henrique Gebrim, diretor do Hospital Pérola Byington, explicações sobre o fato.
No documento, a parlamentar relembrou que a unidade de saúde já foi alvo, em 2019, de manifestações de grupos fundamentalistas antiaborto. Os religiosos faziam vigílias de oração em frente ao hospital e, na ocasião, uma mulher vítima de estupro coletivo que realizaria um aborto legal chegou a ser agredida pelo grupo.
"A atual denúncia, por sua vez, reveste-se de gravidade ainda maior, uma vez que, como dito, referida ação religiosa estaria sendo realizada por funcionárias uniformizadas no interior do próprio hospital, gerando constrangimento e sofrimento psíquico às mulheres que buscam acessar o serviço", escreveu Sâmia no ofício.
Confira, abaixo, a íntegra do documento.
"Voluntários"
Após o caso vir à tona, o diretor do hospital Luiz Henrique Gebrim afirmou que a distribuição do material religioso foi feita sem a ciência da administração da unidade. Ele informou ainda que quem entregou os absorventes e as bíblias foram voluntários, e não funcionários.
"Nós tínhamos uma equipe que fazia humanização de forma voluntária, são senhoras da sociedade que queriam ajudar principalmente pacientes de câncer. É um kit que a gente recebe e algumas colocaram Bíblia também, mas não pode distribuir qualquer material gráfico dentro do hospital, já suspendemos, alertamos as voluntárias e estamos pessoalmente checando as abordagens", declarou.
Em nota oficial, o Hospital Pérola Byington "lamentou" o "desconforto" diante do ocorrido e informou que reorientou seus voluntários para que o caso não se repita.
Confira, abaixo, a íntegra da nota.
"O Hospital Pérola Byington lamenta o desconforto e repudia qualquer atitude contrária à liberdade de consciência e de crença quanto o caráter laico de instituições públicas, previstos em Constituição.
Para que situações como esta não se repitam em nenhum setor do hospital, a direção do Hospital Pérola Byington realizou nova reunião com profissionais e voluntários do setor de humanização e capelania hospitalar, reforçando a obrigatoriedade do cumprimento das normas estabelecidas pelo serviço, que respeita as escolhas individuais de suas usuárias e, justamente por isso, não permite a distribuição de panfletos ou livros como o citado pela reportagem em qualquer setor, considerando inadmissível qualquer coação às suas pacientes.
Cabe acrescentar que, segundo a direção, a distribuição indevida ocorreu no setor de ultrassom que atende pacientes acompanhadas por diversas frentes de atendimento, incluindo a Oncologia e mulheres assistidas no Ambulatório de Violência Sexual do Programa Bem me Quer.
O hospital lembra a todos que disponibiliza Ouvidoria para acolher qualquer paciente ou usuário, acolhendo dúvidas e queixas. Os contatos podem ser feitos pelo e-mail crsm-ouvidoria@saude.sp.gov.br e telefone (11) 3232-9021 ou 9000"
"Tortura psicológica"
Ao entrar em contato com a denúncia através das redes sociais, a antropóloga Debora Diniz, especialista em direitos reprodutivos, classificou a prática de distribuição de bíblias no hospital como "tortura psicológica".
"Há falta de imaginação sobre a dor de uma menina ou de uma mulher vítima de estupro. Como alguém pode fazer proselitismo religioso contra uma vítima de estupro à espera de um ultrassom? É tortura psicológica", escreveu em comentário nas redes sociais.
Após a declaração do diretor do Pérola Byington, Debora Diniz reforçou a crítica: "Uma menina ou mulher sofre violência sexual. Do estupro, engravida. Chega em um serviço de aborto legal em SP e recebe uma Bíblia. É imoral, abusivo. O hospital alega que são 'visitantes' que distribuem a Bíblia. Ainda pior: fanáticos entram e fazem o que querem com as pacientes".